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"Girl" Should Have Been Interrupted

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Olá, o meu nome é Alice. Sou uma mulher trans, e todos os anos morro um bocadinho por dentro com filmes que homens cis fazem sobre mulheres trans. Este ano foi o “Girl”, de Lukas Don’t. Dhont. Desculpem a gralha. Partilho com vocês aqui alguns pensamentos sobre este filme, que vi no Queer Lisboa 22. Entretanto o festival já acabou, no passado sábado dia 22, e o filme até foi premiado (falarei disso adiante). Normalmente estas coisas deviam ser publicadas assim logo, no dia seguinte à projecção, pimbas, mediatismo, discussão, isso tudo. Mas espero que me desculpem o atraso, enquanto pessoa directamente envolvida na temática, a raiva e a dor que este filme me causaram dificultaram a escrita deste artigo. Mas pronto, mais vale tarde que nunca. Aqui vai!

Ao contrário da crítica curta e superficial que Nuno Miguel Gonçalves faz ao “Girl” de Lukas Dhont no esQrever, o filme não é um “retrato assombroso da experiência trans como nunca se viu em cinema”. Ele é, sim, um exercício de poder. Um retrato redutor de uma suposta experiência trans, não surpreendentemente realizado por um homem cis. É um exercício voyeurístico fundado em crueldade e sadismo.

O resto do texto contem spoilers sobre o filme, aconselho-vos a ler na mesma até porque desaconselho o visionamento do filme. Façam de vossa justiça.

“Girl” narra a história de uma rapariga trans (trans digo eu, que o filme nem uma vez emprega a palavra). Lara tem 15 anos, faz ballet e vive com o seu pai e irmão. Mudam de cidade para que Lara possa seguir formação em dança clássica num dos conservatórios de dança mais reputados do país.  O filme explora a sua transição acompanhada por uma equipa médica (tema explorado adiante), os seus desafios na formação em dança (quer o “atraso” técnico que tem face às restantes alunas quer a necessidade que esta tem de fazer tucking e as implicações disto na sua prática de dança), a sua relação com o seu pai (que a apoia de todas as maneiras possíveis, é presente e engajado na sua relação com a filha), a transfobia que esta sofre na escola e com as colegas de formação, e a transfobia internalizada que esta sente, que se manifesta num desconforto com o seu corpo e um desejo de o ver modificado (principal tema, transversal ao filme inteiro e fetiche principal do voyerismo do realizador).

O enfoco do desconforto da personagem é centrado nos seus genitais e o aguardar da prometido cirurgia de confirmação sexual. Este momento parece cada vez mais distante. A personagem está muito fraca de saúde e tem uma infecção genital a um momento, pelo que a cirurgia não é possível nessas circunstâncias. Pelas mesmas razões de saúde, é obrigada a deixar a formação de ballet. Num momento de desespero, Lara auto mutila-se cortando o seu próprio genital num acto premeditado e planeado. Na cena seguinte ela está no hospital em recuperação, acompanhada pelo pai. Na cena final, Lara tem um penteado novo e uma cor de cabelo nova, e caminha confiante e com um semi sorriso num túnel subterrâneo. Fim.

Uma nota teórica antes de seguir para a análise do filme e fundamentar as acusações afiadas que fiz acima: Contar histórias tem poder. A ficção não é um universo paralelo, ela pode reflectir a realidade (ou fazer-nos crer que o faz não fazendo), ela pode fazer parecerem possíveis novas realidades (ou naturalizar outras que já circulam nos imaginários colectivos). Ela influência o espectador. Ela transmite ideologia, mais ou menos explicitamente, com maior ou menor intencionalidade.

“Girl”, então, veicula uma ideologia tóxica e danosa. Normaliza, cristaliza e empodera uma narrativa perigosa sobre pessoas trans. Para um público trans, reforça a transfobia internalizada que já temos em nós, embutida por uma sociedade que nos ensina a nos odiarmos e aos nossos corpos. Para um público cis, cria nele uma sensação de falsa empatia, fá-lo crer conhecer agora intimamente a experiência trans e facilmente reproduzir a narrativa perigosa do filme na melhor das intenções e crendo-se aliado. E mais do que um filme de pequena circulação que reproduziria a sua perigosa ideologia em pequena escala, este filme foi tragicamente premiado em Cannes, muito mais tragicamente premiado no Queer Lisboa 22, e está nomeado para os Oscars. Quando as histórias que contamos têm esta projecção, a nossa responsabilidade sobre as narrativas que veiculamos é multiplicada. E Lukas Dhont não devia ter contado esta história. E muito menos ser creditado por um qualquer serviço cívico de consciencialização, que o filme não faz.

Esta história já foi contada, reproduzida, repetida. Não faltam exemplos de mulheres trans a sofrer no cinema, em narrativas que em nada abrem outras possibilidades que não a do trauma. São sempre em formato aristotélico, autênticas tragédias gregas de destino fixo e fado inalterável. São sistematicamente histórias que naturalizam a ideia de uma “disforia de género” essencial e essencialista, que centralizam e prendem a experiência trans numa lógica de medicina e doença.

Um final daqueles poderia ser compreensível se o filme fosse uma cautionary tale sobre o gate-keeping médico. A equipa médica que “acompanha” a transição de Lara no filme é profissional e amorosa. Não é real, nem representativa do controlo médico ao qual as pessoas trans são submetidas (em vez do apoio médico ao qual deviam ter acesso). Se aquela equipa médica fosse um reflexo das reais, e se ela atrasasse a vida de Lara por nenhuma outra razão que não abuso de poder, transfobia e projecção de estereótipos de género nela, este final podia ser uma forma chamar a atenção para esta realidade. Dos médicos que atrasam e barram pessoas trans do acesso às cirurgias e hormonas das quais precisam, quando precisam. Esse atraso irresponsável leva, na vida real, a decisões desesperadas de pessoas trans como a que Lara teve no filme, e piores. Mas não foi isso que aconteceu no filme.

O filme também podia ter tido outro fim. Podia ter sido uma história com final feliz, ou agridoce. Em que ela aprendia  a coexistir com o seu corpo, ou a tolerá-lo um pouco mais tempo enquanto aguardava a cirurgia. E se tornava bailarina. E era feliz (por uma vez, um mulher trans feliz no cinema).

Podia ter sido uma história com final feliz, ou agridoce. Em que ela aprendia  a coexistir com o seu corpo, ou a tolerá-lo um pouco mais tempo enquanto aguardava a cirurgia.

Ou ela podia mutilar-se como fez, ou de uma outra maneira, e o filme fechar a narrativa passando a ideia de que aquilo não tinha sido solução. Ou qualquer outra coisa.

Mas não foi nada disso que o filme disse. O que este filme diz, é: “Mutila-te pequena, mutila-te! Olha que não há mais soluções no mundo senão mutilação.” O filme apresenta a mutilação que Lara cometeu enquanto solução. Apresenta-a a mutilar-se, e depois sorridente e confiante. O filme mostra Lara com apoio familiar e médico e mutila-se na mesma, cristalizando uma lógica de sofrimento inescapável. Reforça a narrativa médica sobre pessoas trans, naturaliza o discurso de um sofrimento essencialista.

O filme mostra Lara com apoio familiar e médico e mutila-se na mesma, cristalizando uma lógica de sofrimento inescapável.

O actor que fez de Lara ganhou o prémio de melhor actor no festival Queer Lisboa 22. Um festival que tem a minha idade, mas não parece. As problemáticas políticas em torno de um homem cis ser mais uma vez premiado e celebrado por representar uma mulher trans estão extensamente documentadas na internet um pouco por todo o lado, por favor não hesitem ser humildes e pesquisar, ler reflectir e pensar antes de encherem as caixas de comentários de onde quer que leiam isto. O júri de um festival de cinema queer o fazer, é todo um outro nível. Especialmente com uma salvaguarda afiada da porta-voz do júri que se protegendo em antemão das críticas a esta situação, louvou vergonhosamente a “liberdade”. Vivemos num país livre, onde toda a gente tem liberdade de expressão e quando num júri pode premiar quem quiser. Tem essa liberdade. A liberdade não salva ninguém da nulidade política que possam ser as suas acções, muito menos da crítica. A crítica é parte da liberdade. “Quem não gostar, paciência” foi dito na entrega de prémios. De paciência estamos nós cheias desde há muito. De agora em diante é raiva, não nos calamos mais. Já para não falar do facto de um festival de cinema queer ainda ter prémios de “melhor actor” e “melhor actriz”, mas isso são outros quinhentos.

A crítica é parte da liberdade.

Sobre o filme ter ganho o prémio do público neste mesmo festival, digo apenas: choro.

 

Alice Cunha, activista

 

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