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46 anos de Abril e de lutas LGBTQI+ em Portugal

Celebramos 46 anos de democracia, 46 anos que Portugal e suas colónias acordaram de um período de repressão e de ditadura sangrenta. Fruto de uma madrugada libertadora em que os capitães de Abril, junto com a força revolucionária popular, romperam com a cegueira de uma guerra forçada e sem fim à vista, abrindo as portas à Democracia, à Igualdade, à Justiça Social, à Paz e Solidariedade. Estes foram tempos de afirmação, renovação, de sonhos e de perseguição de utopias de um povo que durante uma vida não soube mais do que viver de uma alegria reprimida pela ignorância propagandeada pelo Estado Novo.

 

Este ano, evoca-se o 25 de Abril num cenário de crise, ou diria mesmo de guerra. Uma guerra biológica, causada por um tal coronavírus (SARS-CoV-2) que põe em evidência os limites do direito democrático assim como da debilidade de outros frutos que Abril nos trouxe, serve de exemplo, o SNS e a precariedade laboral dos profissionais que a ele diariamente se dedicam. Associada a esta crise, surge o medo, a incerteza, a ansiedade que se apoderam do isolamento social, sempre com a esperança que este confinamento seja medida suficiente para nos proteger.

Para vencermos esta crise, torna-se indispensável utilizar as armas que os capitães de Abril nos legaram. A coragem para lutar na clausura de cada lar, a força e responsabilidade cívica entre gerações, o respeito e sentido de entreajuda comunitário, a solidariedade por quem nesta guerra sucumbe e pela perda das suas famílias, assim como por todos os que diariamente se colocam em risco para que não nos privemos das necessidades básicas indispensáveis alimentando-nos o sonho de que tudo vai ficar bem.

Dos caminhos que 1974 nos abriu, são inúmeros os trilhos de mudança que a sociedade portuguesa se socorreu ao longo dos últimos 46 anos. Falar de revolução, de liberdade e identidade é falar de uma das lutas que mais obstáculos viu sofrer nos últimos anos, a luta pelo reconhecimento dos direitos LGBTQI+, em Portugal. A data que celebramos abriu uma janela ao combate do preconceito e das fobias consolidadas pelos 48 anos de repressão e censura que se viveram, no entanto, este foi um caminho que exigiu tempo e diferentes etapas para a transformação de mentalidades sobre o respeito pela liberdade sexual e pela expressão e identidade de género.

Após anos de repressão e censura, em que a imagem criminosa do homossexual, subversiva à pátria[1], seria encoberta por privilégio de classe ou hierarquia social, enaltecida pelo medo e denúncia das rusgas da PIDE, da humilhação pública, espancamento, ou violento tratamento psiquiátrico, obrigando a que esta matéria fosse silenciada e ignorada como espécie de chaga da sociedade portuguesa no séc. XX, existindo que ainda nos dias de hoje, várias e continuadas lutas colectivas sejam basilares nestas matérias.

“Viva a homossexualidade, viva a Revolução!”

É sabido que o período pós-revolução padeceu de uma desatenção das elites políticas em relação às questões LGBT, que estas só surgiram no espaço público a partir da pandemia do VIH/SIDA e da adesão do país à CEE em 1986. Conta-se que, logo após a Revolução, a 13 de Maio de 1974, a liberdade de expressão e associação leva ao primeiro movimento de acção LGBT em Portugal. O recém-criado Movimento de Acção dos Homossexuais em Portugal (MAHR), publicara um manifesto no Diário da República pela “Liberdade para as Minorias Sexuais”, um texto que reivindicava o direito cívico dos portugueses homossexuais a participar em movimentos de acção política, relacionando a liberdade política com a liberdade sexual, de forma a colocar um ponto final na discriminação das minorias sexuais. No entanto, sendo a homossexualidade em 1974 considerada doença e perversão, este grupo foi extinto logo após a publicação do seu manifesto pela  mentalidade conservadora dos dirigentes militares na época, que consideravam que Abril “não teria sido feito para os homossexuais se reivindicarem[2]. A este respeito, Abril ainda não se tinha feito cumprir.

Foi apenas nos anos 1980 e 1990, que se inicia uma maior preocupação política e legislativa com as questões LGBT em Portugal. Isto, em parte, como disse, devido à crise do VIH/SIDA, que mostra uma nova visibilidade da comunidade LGBT quer pelos manifestos novos padrões de homofobia surgidos pela pandemia, mas também pela mudança de mentalidades adjacentes ao desenvolvimento social e económico que se fizeram sentir naquela altura.

No entanto, fora em 1982 que se verifica em Portugal um ponto de viragem na legislação em matéria de práticas sociais da comunidade LGBT, sendo retirada do Código Penal a criminalização da homossexualidade entre adultos, revogando disposições discriminatórias da homossexualidade que permaneciam desde o Código de 1886 a quem se entregasse habitualmente à “prática de vícios contra a natureza”.[3] Desta forma, com a referência da homossexualidade no Código penal e sua despenalização, a década de 90 é vivida sobe as cores do activismo com um crescente número de organizações e associações a lutar pelos direitos civis da comunidade LGBT nos termos da conjugalidade, parentalidade, da adopção e da família. Contudo, no fim desta década a homossexualidade ainda seria vista como “deficiência da função heterossexual”, de acordo com a Classificação Nacional das Deficiências, publicada em Diário da República a 1999.[4]

Neste caminho, é na primeira década de 2000 que se assiste em Portugal a iniciativas legislativas no sentido do reconhecimento da não discriminação com base na orientação sexual, sendo o ano de 2004 uma data importante sobre o reconhecimento dos direitos LGBT, a consagração do princípio da igualdade e da não descriminação com base na orientação sexual segundo a revisão do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, que diz: “ninguém pode ser discriminado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (…) orientação sexual.”[5] Apenas 30 anos depois de Abril, a comunidade LGBT vê ser promulgado o direito à igualdade e não discriminação por base na sua orientação sexual.

2004 uma data importante sobre o reconhecimento dos direitos LGBT, a consagração do princípio da igualdade e da não descriminação com base na orientação sexual segundo a revisão do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa

Em consonância com os anos 1990, destacam-se no início do novo milénio uma série de movimentos sociais em defesa dos direitos da comunidade LGBTQI+, quer as primeiras Marchas LGBT de Lisboa (1999), Porto (2006), Coimbra (2010), que ao longo dos anos foram atraindo para a rua milhares de  activistas e simpatizantes do movimento, do surgimento de Associações e Grupos de Luta e Defesa dos Direitos LGBT como a Não te Prives (2002), a rede ex aequo (2003) ou das Panteras Rosa (2004), que com o apoio dos grupos políticos com representação na Assembleia da República (entre os quais BE e os Verdes), levaram a que fosse revista e produzida nova legislação abonatória dos direitos de conjugalidade, parentalidade e de família, tal como da revogação de disposições discriminatórias em várias leis.

... destacam-se no início do novo milénio uma série de movimentos sociais em defesa dos direitos da comunidade LGBTQI+, quer as primeiras Marchas LGBT de Lisboa (1999), Porto (2006), Coimbra (2010) ...

Servem de exemplo de conquistas ao nível do Código Civil e Penal, as leis de União de Facto e Economia Comum (2001), a introdução da orientação sexual e da identidade de género como agravantes por crimes de ódio (2000), o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (2010), a lei da co-adopção (2013) e sua revisão permitindo a adopção por casais do mesmo sexo (2016), encerrando um capítulo de discriminação na lei da parentalidade portuguesa e do pleno acesso à família. Mais ainda recentemente, a 12 de Junho de 2018, fora aprovada pelo Presidente da República a nova lei sobre a identidade de género que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e protecção das características sexuais de cada pessoa, tornando obrigatório a menores de 18 anos, aquando a mudança de sexo e do nome no registo civil, fazer-se apresentar de um relatório médico que ateste a capacidade de decisão informada. Com isto, podemos concluir que a lei hoje, reapreciada, assume a protecção e promoção dos direitos fundamentais LGBTQI+, assumindo a protecção dos direitos fundamentais, estabelecendo direitos ao nível do registo civil, da saúde e educação; permitindo o livre desenvolvimento da personalidade de cada pessoa segundo a sua identidade e expressão de género.

Servem de exemplo de conquistas ao nível do Código Civil e Penal, as leis de União de Facto e Economia Comum (2001), a introdução da orientação sexual e da identidade de género como agravantes por crimes de ódio (2000), o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (2010), a lei da co-adopção (2013) e sua revisão permitindo a adopção por casais do mesmo sexo (2016)

Entre Abril de 1974 até aos dias de hoje, como vimos, foram inúmeras as lutas e conquistas por parte da comunidade LGBTQI+. Com avanços e recuos na legislação produzida, passando de um período de criminalização e perseguição, da humilhação ao reconhecimento constitucional da identidade de género e da orientação sexual, assiste-se a um benefício do princípio da democracia e cidadania, através do direito à participação política, à igualdade de oportunidades e da liberdade de ser e amar. Desde a descriminalização da homossexualidade (1982) até à revisão da lei de identidade de género (2018), o caminho político LGBT mostrou-se ser longo e com adversidades, no entanto é necessário continuar a observá-lo sabendo que existem múltiplos episódios de fobia e discriminação na sociedade portuguesa face a estes grupos minoritários.

Perante o cenário de pandemia que vivemos hoje, estes desafios colocam-se ainda prementes. O acesso ao emprego, o direito à habitação, ao ensino e saúde vêem-se prejudicados pela crise económica que já se faz sentir, sendo que as franjas da sociedade, em particular as pessoas LGBTQI+, sofrem mais esse prejuízo.

Se hoje faz sentido festejar o 25 de Abril, mesmo numa guerra onde a única forma de nos proteger é através do distanciamento social? Sim, indubitavelmente. Por todas as conquistas e derrotas neste texto enunciadas, por todas as provas e ameaças à democracia que temos assistido, pela descrença num Estado Social mais forte, pela memória de todos aqueles que viveram e lutaram para que tivéssemos voz e direitos, por uma vida sem medo, sem tirania, pela cidadania, pela liberdade, pela solidariedade, Abril deve ser cumprido. 25 de Abril, sempre!

 

Se hoje faz sentido festejar o 25 de Abril, mesmo numa guerra onde a única forma de nos proteger é através do distanciamento social? Sim, indubitavelmente.

 

Daniel Santos Morais
26 anos
Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu
 

 

Bibliografia:

Nogueira, Conceição, Oliveira, João Manuel (organ.), (2010) Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género, Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

 

Webgrafia:

DRE – Diário da República Electrónico: https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/337/201908090557/127970/element/diploma#127970  [22 de Abril de 2020]

Esquerda.net - O movimento LGBTI em Portugal: datas e factos  [22 de Abril 2020]

Público: O Estado Novo dizia que não havia homossexuais, mas perseguia-os  [22 de Abril de 2020]

Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica: 1º Manifesto Homossexual Português publicado logo após a Revolução dos Cravos   [22 de Abril de 2020]

 

[1] “Não se fala não existe. A regra é esta. A homossexualidade era o segredo que toda a gente sabia. E, como toda a gente sabia, ninguém dizia (…) “A homossexualidade é subversiva para o Estado Novo porque foge à norma (…) De um modo diferente do rufião, o homossexual subvertia igualmente os valores de honra masculinos, confundia as identidades de género, perturbava os códigos que geriam as relações entre os dois sexos, recusava a instituição familiar, o Pilar do Estado Novo” – António Fernando Cascais, Professor na Universidade Nova de Lisboa, em entrevista ao Público sobre a Perseguição da Homossexualidade durante o Estado Novo.

[2] Segundo Isabel Freire (Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica - SPSC): “António Serzedelo, um dos seis autores do documento, lembra que foi ‘bombardeado’ pelo general Galvão de Melo, da Junta de Salvação Nacional, num comunicado lido na RTP. Alegava-se que o 25 de Abril não se tinha feito para os homossexuais reivindicarem.” 

[3] Até à Revisão do Código Penal de 1982 que despenaliza a homossexualidade entre adultos, o Código previa Disposições de 1886: “punindo com medidas de segurança - internamento em manicómio criminal, casa de trabalho ou colónia agrícola (por período de 6 meses a 3 anos, com trabalho forçado), liberdade vigiada, caução de boa conduta e interdição do exercício da profissão  – quem se entregasse habitualmente à «prática de vícios contra a natureza»”, Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género, p.47.

[4] “A Classificação Nacional das Deficiências, publicada no Diário da República inclui nas "deficiências psicológicas" o termo "deficiência da função heterossexual". A tabela que se baseia numa listagem desactualizada da OMS, de 1976 é da responsabilidade do Conselho Superior de Estatística (INE) no qual têm lugar representantes de todos os ministérios e que responde perante o Conselho de Ministros. O caso é denunciado pelo GTH-PSR em frente ao Ministério da Solidariedade Social. O Secretário de Estado da Inserção Social pede ao Conselho a revogação do documento.” in “O movimento LGBT em Portugal: datas e factos” Esquerda.net

[5] DRE – Diário da República Electrónico

 

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