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"As pessoas trans continuam a não ter cuidados de saúde acessíveis e inclusivos"

Sandra Saleiro

Comecei a interessar-me pelo estudo da “identidade de género” na perspectiva das ciências sociais ainda antes da morte de Gisberta.

À excepção de uma associação pioneira - a ªt – Associação para o Estudo e Defesa do Direito à Identidade de Género, das três ou quatro mulheres trans que corajosamente se reconheciam publicamente como tal e dos cuidados psico-médicos para pessoas transexuais, o “vazio” imperava. Não havia números, registos, legislação, conhecimento sobre a identidade de género, a transexualidade e o transgénero. Mesmo na academia, havia quem não soubesse do que eu falava, quem nunca tivesse conhecido ou ouvido falar de uma pessoa transexual ou transgénero. A morte de Gisberta mudou o ritmo da investigação mas, mais importante, colocou a identidade de género na agenda pública, despertou consciências e vontades de saber.

A história de Gisberta seria contada, embora, como quase sempre acontecia, mal contada. O próprio tratamento mediático do caso foi bem revelador do nível de desconhecimento da sociedade portuguesa em relação à problemática da “identidade de género”, desde logo na dificuldade em classificarem Gisberta: para além de transexual, surgiram outras classificações como homossexual ou travesti e em que o género gramatical utilizado era o masculino. Muito provavelmente hoje tal já não aconteceria o que, só por si, prova como alguma coisa mudou. Há, efectivamente, um antes e um depois de Gisberta. Na “cronologia da transexualidade e do transgénero” que elaborei (Saleiro, 2013), foi apenas a partir de Fevereiro de 2006 que foi necessário acrescentar o mês ao acontecimento descrito. Até aí, a escassez das “entradas” não o justificava, o ano bastava. Um simples olhar pela sequência e cadência dos eventos é quanto basta para perceber que foi a partir dessa data que os acontecimentos se desenrolaram, culminando, cinco anos depois, na primeira conquista legislativa para a população T, a lei que regulamenta a mudança de sexo legal e que constituiu, na altura, uma das mais avançadas legislações a nível internacional. A partir daí a identidade de género foi já acautelada no Código Penal e no Código do Trabalho, o movimento associativo evoluiu e diversificou-se, os trabalhos académicos sobre o tema começam a não ser excepção.

Em dez anos muito se fez e muito mais está ainda por fazer. Uma década passada da morte de Gisberta, as pessoas trans continuam a não ter cuidados de saúde acessíveis e inclusivos. Os cuidados disponibilizados pelo Serviço Nacional de Saúde estão num impasse e não acolhem a diversidade de identidades e expressões de género que é possível encontrar na população trans. A lei que regulamenta a mudança legal de sexo ainda não contempla o direito à identidade de género para todas as pessoas, baseada na autodeterminação. Não há uma lei integral anti-discriminação para os vários sectores. A identidade de género não está ainda contemplada no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. As crianças diversas em termos de género não têm uma legislação que as proteja e que as deixe ser quem são. As pessoas ainda têm que se dividir apenas entre homens e mulheres. Mas teremos que ser já capazes, enquanto sociedade, de alcançar estas metas sem necessidade de novas mártires, contando com a força e a voz das pessoas trans.

 

 

Sandra Palma Saleiro

Doutorada em Sociologia pelo ISCTE-IUL – Instituto Universitário de Lisboa.

Integrou a equipa do projeto “Transexualidade e Transgénero. Identidades e expressões de género”, desenvolvido no CIES-IUL entre 2007 e 2010 e financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, que inaugurou a investigação sobre esta temática nas Ciências Sociais em Portugal. Na sua tese de doutoramento, intitulada “Trans Géneros. Uma abordagem sociológica da diversidade de género” (2013), mapeou a diversidade de identidades e expressões de (trans)género na sociedade portuguesa.

 

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