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Fernando Santos / Deborah Kristall: "Talvez sejamos uns gatos, que a vida nos pega pelo cachaço e nos faz fazer aquilo que fazemos"

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Fernando Santos todas as noites dá vida a Deborah Kristall, a figura máxima do panorama do transformismo nacional actual, no Finalmente Club, em Lisboa. A carreira é vasta e o sucesso inegável. As experiências e histórias por contar desfiam-se como quem descobre um novelo dourado. Estivemos à conversa para perceber o que pensa sobre questões de identidade de género e sobre os meandros do transformismo nas suas diferentes correntes.

 

dezanove: “De homem não passamos, a mulher não chegamos.” Deborah Krystall é uma personagem artística de Fernando Santos, para propósitos de espectáculo. Foi nesse sentido que o disse. Mas e na vida? Onde é que se define, na sua opinião, alguém ser de um determinado género?

Fernando Santos: Prefiro não me definir. Vou usar uma frase de uma pessoa que eu admirei e continuo a admirar muito, que é o Professor Agostinho da Silva, que dizia que talvez nós fôssemos uns gatos, que a vida nos pega pelo cachaço e nos faz fazer aquilo que fazemos. Acho que estou a fazer exactamente aquilo que a vida quer que eu faça, porque não fiz muito para que isso acontecesse. Aliás, ao princípio, nem queria fazer isto. Não me sentia com habilidade, depois fui ganhando experiência.

 

Em pleno século XXI, num país desenvolvido, ainda existe demasiada ignorância sobre estas questões de género, quer em termos físicos e biológicos, quer enquanto identidade, quer enquanto expressão do indivíduo na sociedade. O que é que considera que está a faltar, para que se passe da ignorância à aceitação?

Está a faltar um fenómeno na humanidade que é encontrarmos o ponto de ligação que está entre o amor e o ódio… Existem pessoas que amam com muita intensidade, existem pessoas que odeiam da mesma maneira. E se calhar precisamos de encontrar o ponto que fica no equilíbrio dessas duas coisas para esta nossa aldeia global. Nem nos amarmos sempre nem nos odiarmos. Encontrarmos o conhecimento, a sabedoria que falta ao ser humano dentro de todos os seus fenómenos.

 

Existem pessoas que amam com muita intensidade, existem pessoas que odeiam da mesma maneira. E se calhar precisamos de encontrar o ponto que fica no equilíbrio dessas duas coisas para esta nossa aldeia global.

 

Um dos eventos que tem dado visibilidade a questões sociais importantíssimas, não só pela mensagem da própria Associação Abraço, da luta contra a sida, como pelas diversas temáticas trazidas pelos convidados, é a Gala Abraço. Como tem sido a experiência de organizar esse espectáculo nos últimos anos?

É uma experiência gratificante. É simpático. Também não tenho a possibilidade de fazer muita coisa porque a maior parte das pessoas não têm a disponibilidade que seria precisa para fazer um super espectáculo. Há pessoas que vivem no Algarve, há pessoas que vivem no Porto, há pessoas que mesmo vivendo em Lisboa trabalham e não têm horários. O teatro também não está sempre disponível para nós ensaiarmos naquele espaço, que é importante, não é a mesma coisa vir ensaiar ao Finalmente e depois querer pôr no S. Luiz. Por isso, não é possível fazer o grande espectáculo que as pessoas gostariam que acontecesse, mas faço aquilo que é possível fazer-se, com muito carinho e com muito amor.

É uma experiência gratificante [organizar a Gala Abraço].

 

 

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RuPaul disse “Nascemos todos nus, o resto é drag”.  Têm-se visto mais recentemente surgir as faux queens, mulheres que fazem performances drag. Qual é a sua visão sobre essa vertente artística?

Qual é a minha visão? Acho que é tão normal como um homem se vestir de mulher, por que não? Não é? Claro que sim! É que não consigo conceber outra ideia. Se os homens se podem vestir de mulheres desde a Grécia Antiga, porque é que as mulheres não hão-de poder? O direito é igual, somos todos seres humanos.

 

E drag kings? Mulheres que fazem drag masculino. É uma performance praticamente inexistente em Portugal, enquanto formato de espectáculo propriamente dito. Porque acha que é assim?

No princípio dos anos 80 houve algumas. Algumas mulheres… mas pronto ficaram por aquelas, não sei porquê. Também as casas acabaram, estamos muito limitados, não é? Só há o Finalmente a dar espectáculo todos os dias. E se calhar por isso não estimula, também não motiva as pessoas a fazerem disto uma profissão. Como hobby se calhar até haverá muita mulher com vontade de fazer. Mas não sei…

 

Se os homens se podem vestir de mulheres desde a Grécia Antiga, porque é que as mulheres não hão-de poder?

 

A digressão mundial do espectáculo RuPaul Drag Race Werq The World Tour passaria, pela primeira, em Portugal, a 10 de Junho, no Coliseu de Lisboa. Mas hoje [2 de Fevereiro] foi conhecida a notícia que a passagem pelo nosso país foi cancelada dado que não conseguiram garantir a sala devido a uma sobreposição de agendas… 

O programa RuPaul’s Drag Race tem contribuído muito para a maior aceitação do transformismo enquanto arte, à escala mundial, e para a luta contra os preconceitos LGBT+. Acha que num futuro próximo seria importante, e viável, a produção desse tipo de conteúdo também em Portugal?

Se calhar… eu acho que sim. Acho que é muito provável que funcionasse em Portugal. Nem sequer penso que estejamos a anos-luz de uma coisa assim, por que não? Temos todas as possibilidades de fazer. À portuguesa, não será à americana, mas pronto acho que sim.

 

E claro que seria a Deborah Krystall a apresentar, não é?

Isso não sei… (sorriso)

 

É notável a forma como mantém o Finalmente Club. A atenção à qualidade do espectáculo e aos pormenores, e sobretudo toda a versatilidade que existe, para uma equipa tão reduzida dar conta de toda a produção do espectáculo, com tudo o que isso acarreta, é de se lhe tirar o chapéu. Mas, imaginemos que teria um palco com todas as condições, a equipa que quisesse, e sem ter que pensar em orçamentos, como seria o espectáculo dos seus sonhos?

(risos) Seria o grande espectáculo da minha vida. Sem todas as condicionantes que tenho eu acho que faria o melhor espectáculo de sempre. Não sei como, assim de repente, não sei o que é que faria, mas sei que faria o melhor espectáculo tendo todos esses ingredientes… e sem condicionantes.

 

Mas acha que está mais perto de haver um espectáculo de transformismo em Portugal numa casa ampla… num espaço de quinhentos, mil lugares… isso é viável em Portugal?

É viável sim. Trabalhei de Norte a Sul, de Vila Real de Trás-os-Montes a Sagres. E as pessoas que tinham medo de arriscar a pôr um espectáculo de travesti há vinte anos, depois ficavam surpreendidos como é que as pessoas gostavam. Por isso se há vinte anos era viável, hoje é muito mais.

 

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As pessoas que tinham medo de arriscar a pôr um espectáculo de travesti há vinte anos, depois ficavam surpreendidos como é que as pessoas gostavam.

 

Ruth Bryden e Lydia Barloff, por exemplo, tendo deixado o legado que deixaram, são hoje, para muita gente, nomes desconhecidos. Já têm havido alguns esforços para divulgar mais a história do transformismo português ao longo dos anos, alguns livros, alguns registos. Não considera que seria importante uma base de dados realmente abrangente para esta arte, que a documentasse devidamente, como existe para as restantes?

Acho que sim. E não é só a Lydia Barloff e a Ruth Bryden, que foram dois grandes ícones do travesti em Portugal… Está muito esquecido e nunca mais se falou na Doll Phoenix, que foi o artista considerado nos anos 80 o melhor travesti em Portugal.

E fez uma série de programas com o pianista Rui Guedes, na RTP, em que ele interpretou todas as mulheres possíveis do mundo do music-hall, e quando já não tinha mais mulheres para fazer, acabou a fazer o Elton John. Acho que foi a última coisa que fez foi o Elton John. Ele fez Marilyn, fazia muito bem Barbra Streisand, fez Edith Piaf, fez todas as mulheres possíveis… Shirley Bassey, Cher, fez tudo. E isto em meados dos anos 80.

E a Zizi Mayer… A Zizi foi o travesti com melhor imagem de sempre, de todos os tempos… sei lá, tantos outros que passaram… a Kirita Shanghai, a Patty Cake… A Petty Cake que ainda hoje é meu amigo, … foi a pessoa que “obrigou” a revista Nova Gente a dar um prémio a um travesti em Portugal. Em 79. Imagine-se, não é? E a qualidade era tal que criaram um prémio pela primeira vez para dar a um travesti. E estavam cá todos, a Lydia, a Ruth, a Zizi… e a Petty Cake recebeu pela primeira vez em Portugal um prémio da Nova Gente.

 

E onde é que podemos encontrar registos destas pessoas numa hemeroteca?

Se forem procurar, há muita gente que fantasia e que se esquece e mete os pés pelas mãos. Eu às vezes vejo pessoas a contar coisas que são minhas. E eu digo: “E tu estavas nisso, de certeza? Tens a certeza? Que idade é que tinhas quando estavas a fazer isso?”. Que são histórias que eles ouviram e não sei quê.

Um amigo em Paris diz a mesma coisa: “Então não está aqui uma bicha a contar uma coisa que se passou que nós estávamos os três, eu, tu e a Petty Cake, ela diz que estava também. Então ó Joana, mas como é que isso aconteceu? Como é que tu estavas se éramos só três?”.

Tenho um amigo que disse que estava numa cena, que lembro-me perfeitamente, que aconteceu em Torres Vedras. Ele ia lá comigo, mas nessas coisas não estava. Coisas que aconteceram, que são hilariantes, não é? Que aconteceram na época, porque a época também se propunha a isso.

Mas mereciam sim, merecia ser registado, muita gente. Muita gente. Houve muitos artistas na época. A Belle Dominique criou um grupo de esquerda, que se chamava a TraveCoop, uma cooperativa de travestis que teve muita graça na época. E havia uma casa onde eles trabalhavam no Monte Estoril, que era o Ronda 77, onde ele tinha a TraveCoop, que era o líder do grupo.

Houve muitos artistas na época. A Belle Dominique criou um grupo de esquerda, que se chamava a TraveCoop, uma cooperativa de travestis que teve muita graça na época.

Por isso é que havia outro espectáculo, com outro líder, no Rocambole, que é hoje a segunda sala do Trumps, havia outro grupo de espectáculo. Eu estreei-me num outro grupo, muito bom também, que estava na Amadora. Aos Domingos as casas fechavam aqui, tinham por hábito fechar, e ia tudo para a Amadora ver o espectáculo de lá. Nós fazíamos as estreias a esse dia, era muito intenso. Agora reduzimos, reduzimos, e estamos aqui.

 

Não estamos numa época fácil para o empreendedorismo artístico no nosso país. E quanto ao transformismo, prova disso é o Finalmente Club ser o único espaço aberto todos os dias em Lisboa. Por outro lado, a internet e as redes sociais permitem já outro tipo de alcance, que, não substituindo um espectáculo ao vivo, tem a vantagem de poder trazer audiências de escala global.  Qual é o futuro em que acredita, para o transformismo português?

É complicado… pode ser que de um momento para o outro aconteça algo que transforme este universo, que lhe dê mais amplitude, ou manter-se… não sei… Gostaria muito que continuasse e que eu amanhã tivesse a possibilidade de estar sentado a ver também um espectáculo de travesti. Quando me reformar, quando deixar de fazer, também continuar a ir ver, não só um, mas vários. Olha hoje vou ver aqueles, hoje vou ver os outros… Mas não sei, sinceramente não faço a mínima ideia.

 

Gostaria muito que eu amanhã tivesse a possibilidade de estar sentado a ver também um espectáculo de travesti.

 

Tem havido um aparecimento de novas caras no transformismo a começar a trilhar caminhos de sucesso. Quais considera serem as características necessárias a um bom artista de transformismo, e o que aconselha aos que queiram começar?

Eu acho que o que é preciso é nascer artista. Se não se nascer artista pode-se fazer um artista, mas será sempre, para mim, um empregado de espectáculo. Porque há o artista e o empregado de espectáculo, que é aquela pessoa que luta muito, tem todo o valor, merece na mesma consideração, mas não nasceu artista. Depois o que nasceu artista às vezes até pode fazer coisas que não são muito profissionais, mas são artistas. Eu considerei toda a minha vida assim, e não sei porquê, é uma ideia que é natural.

É preciso é nascer artista. Se não se nascer artista pode-se fazer um artista, mas será sempre, para mim, um empregado de espectáculo.

Agora o que é preciso é realmente respeito, disciplina, pelo trabalho, pela arte, isso não pode nunca faltar, não é? Podemos ter uma veia artística, mas, se não soubermos alimentar isso, é como ter uma planta e depois não a regar, ou não cuidar e não tratar.

Eu acho que é isso, que a pessoa tem que sentir dentro dela… Estou-me a lembrar de uma actriz fabulosa que é a Fernanda Montenegro, que diz isso para os actores: “Deixem de ser actores, vão para casa, esqueçam que querem ser actores. E se não conseguirem viver sem isso, então voltem e sejam actores”. Eu acho que passa um bocadinho por isso também, não é? Se a pessoa não conseguir viver sem fazer isso, sem se pintar, sem ir para o palco, então respeite as regras que há. Ou crie as suas próprias regras, mas que faça algo que dignifique também aquilo que os outros andaram aqui a sofrer muitos anos, não é? Acho que é isso.

O que é preciso é realmente respeito, disciplina, pelo trabalho, pela arte.

 

 

Entrevista de Inês Marto e Paulo Monteiro

Fotos: Luís Campos da Costa

 

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