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"Eu não procuro, eu encontro": Madonna no Coliseu de Lisboa 

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Quando daqui a muitos anos Taylor Swift e Ed Sheeran tiverem morrido como despojos de uma guerra implacável contra o tempo, e Madonna e Michael Jackson estiverem mais vivos que nunca, lembraremos com orgulho e saudade (seja a de Amália ou de Cesária Évora) os concertos que Madonna, mesmo lesionada e já sexagenária, deu no Coliseu dos Recreios no fim desta década, em apoio do seu álbum de fusão lisboeta, Madame X

 

É um regresso a casa, uma paragem inesperada, mas justificável para quem conhece este universo. Na verdade, poucos momentos da pop terão sido tão perfeitos, como um moonwalking, uma luva de brilhantes ou uns certos cones em forma de sutiã (ou será ao contrário?) ou agora esta pala no olho: Madonna é Madame X, a mulher sem nome, a mulher que quisermos que seja e que ela quiser ser, o exemplar perfeito que temos neste tempo de uma linhagem que vai de Eva a Cleópatra e termina em Marilyn Monroe.

Se alguma justiça podemos fazer à arte de Madonna é precisamente a sua maneira aparentemente pretensiosa de dizer que irá ficar - e nunca lhe digam para parar, nem mesmo com lesões, "don't tell me to stop", disse ela no Coliseu - porque mesmo não acreditando na meritocracia da arte, o seu trabalho de entreter foi sempre um trabalho de procura, que assiste todo o artista honesto. E como dizem as escrituras, felizes aqueles que encontram o que ainda não sabem que procuram - o artista reconhece imediatamente aquilo de que necessita, por isso, como Picasso, e agora como diz a letra da música de Madame X, ela encontrou, 'neste mundo que é selvagem, no seu caminho que é solitário', uma nova razão para criar. E depois de uma série de concertos nos EUA, chega agora à raiz, ao verdadeiro melting pot que Lisboa está novamente a ser.

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Vendo ao vivo a sua complexidade, quer sejamos um consumidor experiente quer uma virgem, certamente que nos deixamos tocar como se fosse a primeira vez. Nunca se ficará indiferente. Tal como um bom livro de poesia, uma peça de teatro, a nossa leitura nunca está concluída - e nas artes performativas, então, o palco difere todas as noites mesmo que o guião seja o mesmo. Madonna vive e celebra a sua complexidade quando entretém - encontra, no nosso encontro, sem telemóveis e sem redes sociais, uma proximidade construída que já nunca conseguirá alcançar de outra forma; exilada dos outros numa redoma milionária, isto será o máximo que conseguiremos alcançar do brilho dos seus olhos, ou dos seus espartilhos - e até isso é trompe l'oeil que vemos como quem vai a um museu. A fuga que encena no final, como mera espectadora, por entre o público (obviamente protegida por seguranças), é paradigmática.

Um dos momentos, por isso mesmo, que se reveste de uma forte carga simbólica, é precisamente quando não acontece nada e está só ela no palco, falando connosco, e com uma máquina polaroid faz a (supostamente) 'única foto do concerto', aquela que ela irá vender por uma soma avultada para a sua obra de beneficiência no Malawi, o mesmo sítio, aliás, onde encontrou, também sem procurar, uma outra razão para a sua vida: os filhos mais novos. 'Life is a circle', diz ela a uma ponto do álbum e do espectáculo, enquanto rodopia em módulos, como dervixes encantados procurando o encontro do divino no real – retomado na secção final em ‘Come Alive’. Mais à frente dirá também 'life is mistery', começo icónico de uma sua magnum opus - e quem nos ensina melhor o mistério desse constante refluxo da vida senão esta bailarina do palco universal?

Esse momento é simbólico porque desconstrói tudo o que o concerto até então defendia: as ruínas do mundo ocidental, onde é precisa uma nova democracia, uma verdadeira democracia (não no sentido original grego, onde o trabalho escravo era condição essencial para a 'liberdade' dos cidadãos...), uma nova ordem do mundo. Madonna di-lo a início com uma espécie de fato de Napoleão pós-1789 - já não é a Marie Antoinette que (en)cantou 'Vogue' em 1990, reinventada anos mais tarde na abertura de outra turné, sintomaticamente intitulada Reinvention Tour, em 2004. Os mais atentos já sabiam que com Madonna tudo é complexo; e ela já o avisou no início deste concerto, depois de dar o mote com James Baldwin ('A arte está aqui para perturbar a paz'), quando vem aos microfones lembrar que 'tudo o que iremos ver em seguida é uma obra de ficção'. Não será por isso de estranhar quando nos diz: sim, é tudo muito bonito, mas lembrem-se que isto é uma igreja de culto e eu sou a vossa rainha, uma business woman (ou uma woman de business, como ironiza em MDNA, de 2012).

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Convém lembrar a este ponto que Madame X é a alcunha que supostamente - gosto de sublinhar o advérbio porque a fonte é a própria cantora e não há outras testemunhas oculares - foi dada a Madonna por Martha Graham (googlem, por favor) quando ainda era uma nobody em Nova Iorque. Mais um feliz encontro de quem não procurou: se o ecletismo e a metamorfose estão para Madonna como Greta Thunberg para a defesa do ambiente, Madame X só pode ser o seu máximo alter ego, a reinvenção suprema, aquele que de uma assentada resume toda a sua carreira.

Depois deste interlúdio materialista, mais à frente, voltamos então ao idealismo com a música de Cabo Verde, uma das descobertas do seu estágio em Lisboa. Vítor Rua, da mítica banda GNR, veio a lume defender ‘Batuka’, colaboração da Orquestra das Batukadeiras com Madonna, como uma lufada de ar fresco no panorama pop,  pensando unicamente na sua complexa frase musical, no ritmo e nas sonoridades que atravessa aquela música. A simplicidade do momento de pura comunhão é, sem dúvida, um dos pontos altos desta ida à igreja universal do reino de Madonna, e faz pontes óbvias para o gospel pop de 'Like a Prayer', mais à frente.

Mas se de simplicidade estamos a falar, não podemos deixar de referir um momento que não se pode fabricar por mais 'material' que sejam as 'girls' da pop: ‘Frozen’. Quando Madonna, há mais de 20 anos, fez a sua primeira reinvenção integral com 'Ray of Light', este foi o single de estreia. E nunca mais a pop electrónica foi a mesma. Madonna não editava há quatro anos e entretanto fora mãe, gravara Evita, outra mulher da sua família mítica, já grávida. De muitas formas, ‘Frozen’ ficará como canção-símbolo dessa fase pós-parto, um catálogo de aprendizagem espiritual, de uma certa maturidade dura, mas naturalmente adquirida com a maternidade (mais uma vez, a dizer-nos que não se procura, encontra-se). É assim uma sensação indescritível de círculo fechado quando, 22 anos depois, vemos Madonna no palco, sozinha, apenas com o foco sobre ela, de lenço na cabeça e longa túnica negra, e entre ela e nós uma enorme tela onde se projecta Lourdes Maria, sua cópia genética fidelíssima, a ensaiar uma dança coreografada ao som da música - dança que a própria Madonna poderia ter feito com a sua idade na companhia de Graham. No fundo do palco, Madonna acompanha-lhe calculada e tenuemente os movimentos, matrona experiente, dando primazia à filha, enquanto canta que ‘desejava que o seu coração se fundisse ao seu para nunca se separarem'. Um momento arrepiante de encontro de tempos, um momento sem tempo e de pura poesia.

Li algures alguém a assemelhar este espectáculo a um musical pelo elevado grau de teatralidade, o que não me pareceu nada incorrecto, apenas redundante, já que essa é uma componente omnipresente quando se fala de um concerto de Madonna. A novidade talvez seja ela contar agora, aqui, a história do mundo, cruel, selvagem, injusto, onde não nos podemos esquecer de usar a nossa voz para nos 'expressarmos' (express yourself) senão alguém o fará por nós. Madonna conta indirectamente assim a sua história de censura constante, cujo auge foi 'Erotica' e 'Sex', mas que agora tem os seus detractores na subversão por todos sentida quando encarnou este papel de "sex-agenária" expatriada, com o seu boy toy, vociferando contra as maneiras da cidade, e sem precisar da aprovação de ninguém. Sobre este álbum, aliás, disse que agora que já tem tudo, não quer mais ser pop(ular), só quer fazer algo que seja verdadeiramente engajado e político. Eu acho que, no fundo, toda a arte é política e, por isso, a sua mensagem foi sempre a mesma.

Este espectáculo, a todos os níveis, é disso prova: Madonna nunca procurou, Madonna sempre foi Madonna.


Ricardo Marques (poeta e tradutor)

 

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