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Guida Scarllaty: “No tempo do PREC os políticos e membros do Conselho da Revolução iam assistir aos nossos espectáculos de travestismo”

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Está a comemorar 40 anos de carreira e é um dos nomes mais sonantes da arte do travesti em Portugal. Cruzou fronteiras e voltou. Agora dá cartas na sua arte todas as semanas no bar-concerto Inda a Noite é Uma Criança, na Praça das Flores, em Lisboa. Define-se como “um cidadão normal, que lutou por um lugar ao Sol, como tantos lutam mas não conseguem”. Chegou a hora de saber mais sobre Guida Scarllaty, a personagem levada a cabo por Carlos Ferreira, e que muitos consideram a rainha da noite de Lisboa.

dezanove: Como se define?

Carlos Ferreira: Sou um cidadão normal, que lutou por um lugar ao Sol, como tantos lutam mas não conseguem. A minha paixão foi sempre o teatro, que comecei a fazer muito jovem. Passei por companhias de grandes actores: Mestre Ribeirinho, Laura Alves, Luzia Maria Martins, etc. Até aos 30 anos andei nesse mundo fascinante, mas também duro e por vezes decepcionante.

 

Ainda se lembra da primeira vez que pisou um palco enquanto artista?

Recordo muito bem. Foi uma emoção grande... Era o meu sonho de jovem que começa a concretizar-se. Frequentava ainda o Curso de Teatro do Conservatório Nacional. Tempos de oiro do Teatro em Portugal. O meu "padrinho" teatral foi o grande actor Artur Semedo e a minha "musa inspiradora" a grande e inesquecível Laura Alves. 

 

Fale-nos um pouco mais sobre esse momento. Onde, quando e com quem foi? 

No Teatro Avenida, da empresa Vasco Morgado, aos 17 anos, estrei-me na Companhia do Teatro do Gerifalto. Tinha por colegas nomes já grandes no Teatro: Maria José, Morais e Castro, Rui Mendes, Maria Albergaria, Fernanda Alves, Rosina Rego, e muitos outros. Aprendi muito com todos eles a representar e ter postura profissional. 

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Qual o seu percurso ao longo destes 40 anos? Por onde actuou em Portugal e no estrangeiro? Gostou da experiência?

Aos 30 anos deixei o Teatro Declamado, para abrir o primeiro Café Concerto em Portugal (1975). Era uma experiência pioneira que me aliciava representar permanentemente em travesti. Correu bem, a aceitação foi geral, explosiva, talvez porque empreguei muito rigor e profissionalismo em tudo o que fazia. Depois, convidaram-me (Vasco Morgado) para ser atracção do Teatro de Revista no Parque Mayer. Foi um luxo! Percorri então em tournés Portugal inteiro (continente e ilhas) fazendo teatro de revista com nomes famosos: Camilo de Oliveira, Ivone Silva, Vítor Rosado, Anita Guerreiro, Maria José Valério e tantos outros. Foi o representar no Portugal profundo e com público maravilhoso. Também actuei no estrangeiro a convite de outros empresários, nomeadamente em Londres, Hamburgo, Madrid, Nova Iorque, Marbelha, Bruxelas, etc. e junto de várias comunidades de emigrantes.

 

Consegue viver da arte do transformismo ou tem de ter outro trabalho?

Fui dos poucos que consegui viver da representação em travesti. Como eu, alguns outros (poucos) com talento também o conseguiram. Mas a partir da década de 90, o conceito de travesti-espectáculo decaiu muito com o aparecimento do travestismo de prostituição. Aí, o que antes era atracção, tornou-se conotado com um desvio comportamental e só alguns sobreviveram. Hoje, é muito usual encontrar actores de travesti com um segundo emprego. Aliás, o que eu aconselho vivamente. Porque é uma arte muito dispendiosa. Muito se ganha, mas também muito se gasta, para se fazer um trabalho digno e que dignifique quem o faz, e respeite o público.

 

Quando os fãs o reconhecem na rua como reage?

É sempre simpático ser-se reconhecido. Os que disserem o contrário são falsos modestos! Se bem, que a popularidade em excesso retira-nos liberdade. Eu, experimentei beber desse cálix... E quando estava no auge da minha carreira, deixei Lisboa, continuei a trabalhar onde era mais requisitado, mas radiquei-me no Algarve e daí parti para o Brasil, onde permaneci até 2010. Foram anos muito bons, e não me posso queixar. O público e a crítica, foram sempre muito generosos para mim. 

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Quem são as suas referências artísticas?

Sempre vivi muito da influência do teatro e do cinema musical. Vejo tudo o que for exibido nessa área. Não sou o actor que gostaria de ter sido. Para isso, teria de saber representar bem, cantar bem e dançar bem. É assim, que eu considero o actor perfeito. Mas em Portugal antes, não havia acesso a essas performances. Hoje, já existem tentativas de se formar actores nessas condições, mas antes, imperava o teatro dramático e de comédia, além da Revista à Portuguesa, que é uma forma teatral muito peculiar, diria mesmo inédita, "só nossa". As minhas referências são portanto a música e a comédia... E note, é muito mais difícil fazer rir do que chorar.

 

Tem alguma história gira que queira partilhar com os leitores do dezanove?

Na carreira de um actor passam-se sempre histórias divertidas e interessantes, com o público e com os colegas. Passaram-se no Scarllaty Club histórias divertidíssimas no tempo do PREC (de 75 a 78), nomeadamente com os políticos e membros do conselho da revolução assistiam aos nossos espectáculos. Na época, caía lá toda a Lisboa famosa... Algumas histórias tiveram por protagonistas pessoas que já não estão entre nós, e que por isso, as omito. Mas vieram nos jornais da época... A história mais caricata e antidemocrata que vivi, passou-se no espectáculo comemorativo da criação da UGT, em Tróia. Depois de terem visto descarregar para o cenário de um número meu a fotografia de Mário Soares, disseram-me elegantemente: "Olhe, se calhar não vale a pena actuar... o espectáculo vai ficar grande... Mas esteja descansado, pagamos-lhe o cachet integral!" - E pagaram! - Era já o Portugal democrático no seu melhor!

 

Em que casa de espectáculos ou evento gostaria de actuar um dia?

Percorri todas as grandes salas de teatro e casinos de Portugal, e outras no estrangeiro como Londres ou o Casino de Marbelha com um grande espectáculo de musi-hall convidado pelo empresário inglês Eiric Lindsay. Fui a atracção. Orgulho-me disso! Fui o único actor-travesti que fez três galas no Casino do Estoril e noutros locais em que o acesso era reservadíssimo. Hoje, continuo com a mesma vontade, embora com outra postura, de fazer novas experiências e aceitar novos desafios. Se vier um convite para a Patagónia ou para a Gala dos Óscares... eu vou lá!!

 

Considera que os travestis são bem tratados pela sociedade?

Como disse atrás, os anos de oiro do espectáculo de travesti decorreram entre 1975 até 1990. As circunstâncias que referi, ditaram uma certa repulsa de algum público pelo travesti - como palavra (50%). O público dividiu-se muito. O aparecimento do VIH-SIDA também veio dar uma machadada fortíssima à aceitação deste tipo de actores, normalmente conotados com a homossexualidade. Isso aconteceu, sobretudo, com as camadas mais jovens. As pessoas que hoje têm 30, 40 ou 50 anos sabem destrinçar tudo isso e muitas delas continuam a procurar o espectáculo. Hoje há muito poucas oportunidades de ver um bom espectáculo, por um lado, por haver poucos e bons, e, por outro, por não haver locais apropriados onde este tipo de espectáculo deva ser apresentado como cafés-concerto ou cafés-teatro.

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Neste momento o que está a fazer profissionalmente?

Apresento um espectáculo todas as quartas-feiras, às 22 horas, no bar-concerto Inda a Noite é Uma Criança, na Praça das Flores, em Lisboa, onde o público é maioritariamente a partir dos 25 anos. Como é um local muito frequentado assiduamente pelo mesmo público, obriga-me a variar constantemente de espectáculo. 

 

O que nos pode revelar sobre o espectáculo que está a ser preparado para assinalar os seus 40 anos de carreira?

Esse espectáculo é uma iniciativa da associação Opus Gay e da Câmara Municipal de Lisboa para assinalarem o aparecimento do primeiro local de espectáculos de travesti e que revolucionaram as noites de Lisboa na época. Foram noites que fizeram a grande abertura à sociedade de muitos outros bares e locais onde o travesti era atração. Se consultarem os jornais (e livros entretanto editados) chegam a essa constatação: no mundo do espectáculo, o travesti foi a grande revolução no pós 25 de Abril. Actores que antes tinham medo de representar em travesti, começaram a sair às claras, e hoje o travesti é uma constatação desde o teatro à televisão. Todo o bicho carente se veste de mulher para "ter um pouco de graça"...

O espectáculo vai realizar-se no Fórum Lisboa, no dia 31 de Outubro, e pretende assinalar unicamente isso e logicamente o aparecimento de Guida Scarllaty como personagem central e catalisadora do travesti em Portugal. E vai ter mais nomes, todos eles associados de algum modo ao meu percurso artístico. Alguns artistas não podem estar presentes por estarem a trabalhar, mas far-se-ão representar com as suas mensagens que serão projectadas numa video wall. A coordenação e realização do espectáculo foi entregue pela Câmara de Lisboa a um homem com provas dadas em matéria de Teatro, Carlos Jorge Español, autor, encenador e realizador de eventos. As mais de duas dezenas dos mais conceituados artistas portugueses que vão participar honram-me muito com as suas presenças. Fico-lhes grato e penhor das suas amizades.

 

 

Entrevista de Paulo Monteiro

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