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Júlia Pereira: "As pessoas trans não estão a ser respeitadas nos serviços de saúde e continuam a ser indevidamente tuteladas pelos profissionais da área"

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Júlia Pereira, actual dirigente da API – Acção Pela Identidade – ONG de defesa e o estudo da diversidade de género e características sexuais em Portugal e membro da  membro da TGEU – Transgender Europe, organização europeia de defesa dos direitos das pessoas trans, é a primeira mulher transexual a concorrer como deputada a um assento parlamentar no nosso país. Júlia Pereira, de 25 anos, integra as listas do Bloco de Esquerda pelo círculo de Setúbal.

Júlia Pereira tem, nos últimos anos, mostrado o seu trabalho entre a política e o activismo. Na política é militante do Bloco de Esquerda há vários anos e pertence, desde finais de 2014, à Mesa Nacional do partido. No passado mês de Maio a dirigente bloquista interveio numa audição inédita realizada na Assembleia da República sobre a necessidade de alterar as leis que regulamentam os direitos trans. Já no activismo coordenou o GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade e foi a primeira mulher trans na direcção da ILGA Portugal.

Depois de que foi conhecida a sua candidatura às eleições legislativas de 4 de Outubro, Júlia tem-se desdobrado em entrevistas a vários órgãos de comunicação social em Portugal. Fica agora a saber ainda mais nesta entrevista:

 

dezanove: Muito se tem falado do lugar que ocupas nas listas do Bloco de Esquerda. Podes dizer-nos que lugar ocupas nas listas do BE e se o número faz a diferença para o que pretendes transmitir durante a campanha eleitoral? Por que achas que aconteceu esta variação apresentada pelos média? Estás satisfeita com esta posição?

Júlia Pereira: Ocupo a posição número 8 nas listas do Bloco de Esquerda pelo distrito de Setúbal. Participei no processo de construção desta lista (enquanto membro da Comissão Coordenadora Distrital de Setúbal do BE, onde ocupo a terceira posição) e, obviamente, o lugar que ocupo não me desonra. Preparámos esta lista como uma equipa, abrangendo várias áreas e prioridades. No que me toca a mim em particular, o fundamental é garantir que a causa feminista e LGBT têm visibilidade durante esta campanha legislativa, e ficaria orgulhosa se isso se traduzisse em representatividade na Assembleia da República.

 

Como é que o teu percurso pessoal, no activismo LGBT português e na política poderá fazer a diferença no Parlamento? 
 

Ainda são raras as pessoas trans em cargos de decisão política a nível global. Por isso, isto significa representatividade das pessoas trans no Parlamento. Eu iria pertencer a um grupo muito restrito.
A minha experiência vai fazer a diferença porque eu sou uma activista e me tenho treinado e especializado em defender o direito das pessoas, não em exercer cargos.
Ser membro de uma minoria e representar essa minoria não significa que eu só possa falar e trabalhar questões específicas dessa minoria. Significa que eu posso trazer uma perspetiva diferente e particular que interessa a toda a sociedade.

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Podes nomear as principais discriminações que afectam as pessoas trans e intersexo em Portugal? 

Estamos a falar de uma minoria sem direitos, por isso não podemos hierarquizar. Muitas pessoas trans precisam de determinados cuidados de saúde aos quais não sabem como aceder. Falo, nomeadamente, de tratamentos cirúrgicos que não sabemos se são de facto oferecidos pelo SNS e, se o são, com que qualidade e com que resultados.
As pessoas trans não estão a ser respeitadas nos serviços de saúde e continuam a ser indevidamente tuteladas pelos profissionais da área, que têm a palavra final no reconhecimento destas pessoas. Nem todas as pessoas são reconhecidas. Não existe protecção, não existem direitos sociais. As pessoas trans não têm autonomia e não têm decisão pela própria vida. Muitas destas pessoas continuam a ser excluídas do mercado de trabalho, dos sistemas de educação, têm dificuldade a aceder à habitação, sentem-se inseguras em espaços públicos, etc.
Em relação às pessoas intersexo, creio que falta sobretudo ouvir e levar em consideração o que elas próprias têm a dizer.

 

Esses exemplos afectaram-te em particular?

Sim. Neste momento estou desempregada, e sem recursos para seguir os meus estudos. Eu própria não tenho autonomia na minha vida, embora seja uma jovem activa e altamente qualificada.

 

Que alterações à lei e novas leis gostarias de propor ou de ser a primeira subscritora enquanto deputada? 

É necessária uma revisão à Lei de Identidade de Género, garantido o direito à auto-determinação do género.
É necessária legislação que garanta a proteção social e também é necessário promover políticas públicas que tenham como prioridade garantir a inserção destas pessoas no mercado de trabalho, nos sistemas de educação e a condições de vida dignas.

 

Para além das questões directamente relacionadas com a temática 'trans', como encaras as políticas de austeridade e a sua repercussão, em particular nas pessoas LGBT e no acompanhamento das pessoas 'trans'?
 

As políticas de austeridade estão a asfixiar toda a sociedade e, obviamente, são as minorias que sofrem mais. Porque além de sofrer o que toda a gente sofre não vêm minimizada a discriminação, o estigma e as dificuldades associadas.
A degradação do Serviço Nacional de Saúde é um exemplo. A qualidade e a capacidade de resposta deste serviço em geral piorou drasticamente.
No caso das pessoas trans a resposta tornou-se quase nula. E as normas internacionais deixaram de ser cumpridas.
A austeridade tem também permitido o avanço do conservadorismo, que está a atacar toda a Europa. A direita conservadora bloqueou o reconhecimento jurídico do género em vários países, podemos destacar, por exemplo, as manifestações que ocorreram em França. Em Portugal, tentou referendar-se Direitos Humanos em relação à parentalidade dos casais de pessoas do mesmo sexo. A legislatura que passou foi concluída com retrocessos na lei que regula a interrupção voluntária da gravidez. Ainda há muito por fazer para garantir a igualdade de género e a justiça social, no entanto, não estamos só a falar daquilo em que é necessário progredir, mas também daquilo que é necessário preservar.
A resistência ao conservadorismo é uma prioridade.

 

Conhecendo a evolução do posicionamento dos vários partidos em matérias LGBT, que convergências pensas poder haver nessa frente na próxima legislatura?
 

Os Direitos Humanos dizem respeito a toda a gente. São a base do projecto europeu em que vivemos e estão consagrados na constituição portuguesa. Gostaria que quaisquer matérias que garantam mais direitos e deveres, justiça social e mais dignidade gerassem consensos.

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Conhecendo-se um relativo rejuvenescimento nas listas de vários partidos, sentes que isso pode ajudar a desbloquear algumas reivindicações das organizações LGBT?

A Assembleia da República deve ser representativa de toda a população. Deve por isso, representar a diversidade. E todos os esforços nesse sentido são bem-vindos. Os direitos LGBT em Portugal ainda têm um percurso por fazer e acredito que algumas propostas se poderão cumprir na próxima legislatura.

 

Como encaraste as notícias que saíram na comunicação social sobre a tua candidatura? Os jornalistas dos média generalistas sabem abordar as questões LGBT?
 

Fiquei feliz por a minha candidatura já ter garantido a visibilidade das questões trans durante esta campanha eleitoral. Fui capa do Diário de Notícias e tive direito a chamada de capa de vários jornais e revistas. Cheguei a diferentes tipos de médias, desde jornais diários a semanários, passando por revistas cor-de-rosa, programas de TV e internet. Sinto que a maioria dos profissionais de comunicação social com quem falei me tratou com respeito. Mas ainda é necessário muito trabalho para garantir que a comunicação social tenha como regra uma abordagem respeitosa das questões LGBT. Uma mulher trans ter oportunidade de se expressar nos media com autonomia, sem intervenção de profissionais de saúde, sem advogados, sem assistentes sociais, psicólogos, dirigentes de associações, etc. é um momento raro em Portugal e uma vitória.

 

Que medidas aplicarias para erradicar a transfobia nos jornais online?
 

A transfobia tem de ser erradicada de todo o lado. As medidas para a combater passam necessariamente pela penalização de atitudes transfóbicas.

Os espaços públicos de opinião, como é o caso das caixas de comentários dos jornais online, são relevantes, mas devem ser moderados de forma a garantir que são utilizados com responsabilidade e consciência.

 

Como viste a existência de um bloco trans na última marcha do Orgulho LGBT de Lisboa?
 

O Bloco Trans foi ideia de uma activista amiga, com a qual concordei de imediato.
Foi minha a sugestão de que esse bloco tomasse a frente da marcha, e fiquei satisfeita que essa ideia fosse proposta e aprovada na comissão organizadora da marcha. As frentes trans são comuns noutras marchas do Orgulho e acho que funcionou bem em Lisboa, onde ocorreu pela primeira vez, dando visibilidade às reivindicações trans e promovendo a união entre activistas.

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Uma eleição como deputada não te afastará do trabalho da API ou da TGEU?

Se for eleita deputada irei continuar a trabalhar pelos direitos das pessoas trans e em contacto com os activistas da API e da TGEU.
A API é o resultado de bastante reflexão e pretende ocupar um espaço que estava vazio, tendo em conta que as pessoas trans estão ainda muito desapoiadas na nossa sociedade. E as pessoas intersexo só agora têm uma organização onde elas próprias tomam decisões em relação ao que lhes diz respeito.
Estamos, neste momento, a angariar fundos para formalizar a API enquanto associação e esse passo implicará o alargamento da nossa equipa.
Deixo aqui também o apelo para que todas as pessoas contribuam, com donativos ou colocando um gosto na página de Facebook da Acção pela Identidade.
É muito importante para nós contar com a ajuda de toda a gente!

 

Nas últimas semanas (depois de ser conhecida a tua candidatura a deputada) surgiram novos pedidos de ajuda à API ou ao Bloco de Esquerda por parte de pessoas trans ou intersexo?

Desde a sua apresentação pública, ocorrida há seis meses, os pedidos de ajuda à API não páram de crescer. Por isso, é importante que a API se torne numa associação e possa melhorar as suas capacidades para intervir junto da população trans e intersexo. Os pedidos de ajuda, além de muitos, são bastante diversificados e denunciam a falta de respostas sociais existentes em todos os sectores da nossa sociedade. A API propõe-se a encontrar essas respostas. Temos vários projectos e várias pessoas capazes de os pôr em prática, só nos falta o financiamento necessário.
Quanto ao Bloco de Esquerda, fico feliz por ver cada vez mais diversidade de género entre a militância e espero que isso possa melhorar cada vez mais a intervenção pública do partido.

 

Paulo Monteiro

 

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