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Marielle, presente! Hoje e sempre

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Marielle Franco, 38 anos, mulher negra, cria da favela da Maré, filha de Marinete e Antonio Francisco da Silva Neto, mãe de Luyara, namorada e companheira de vida de Monica Benício, estudante de cursinho popular, prounista, socióloga, mestra, professora, filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com 46.502 votos tornou-se a quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro em 2016, ativista pelos direitos humanos, defensora das causas LGBTT+. Ativista acadêmica comprometida com a produção de uma escrita contra hegemônica e verdadeiramente preocupada com a efetividade das teorias que estudava.

Marielle colocava na prática a política do afeto, a política participativa. Seu mandato aconteceu de forma coletiva, com um corpo formado por mais de 80% de mulheres, uma maioria de mulheres negras, lésbicas e transexuais. Marielle fazia o possível para efetivar a famosa frase “uma sobe e puxa a outra”. Ela não fazia discursos agradáveis aos ouvidos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, composta majoritariamente homens brancos, héteros, velhos de terno e gravata. O seu posicionamento político e sua estética causavam incomodo. Com o cabelo crespo natural, com turbantes, unhas pintadas, roupas coloridas e estampadas, ela desestabilizava a normatividade das vestimentas consideradas adequadas para o cargo que exercia como vereadora, relatora da comissão que acompanhava a intervenção federal na segurança pública no Rio e Presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Foi com esta estética contrastante e com seus ideais revolucionários que Marielle, com a ajuda, de mulheres negras e moradores de favela, em apenas ano e poucos meses de mandato, criou 17 Projetos de Lei. São eles, respectivamente: Programa de desenvolvimento cultural e descriminalização do funk tradicional carioca PL 711/2018; Assistência à habitação para famílias de baixa renda PL 642/2017; Programa Dossier Mulher Carioca - Comprometimento do poder público com a proteção de mulheres no Rio PL 555/2017; Programa de Efetivação de Medidas Socioeducativas para crianças e adolescentes que cometeram crimes PL 515/2017; Prioridade para pagamento dos funcionários públicos PL 493/2017; Cartazes informativos dos direitos das vítimas de violência sexual e estupro PL 442/2017; Contratos de gestão entre o Rio de Janeiro e ONGs de saúde PL 437/2017; Combate ao assédio no transporte público e enfrentamento do assédio sexual PL 417/2017; Dia Municipal da Luta Contra o Encarceramento da Juventude Negra PL 288/2017; Combate ao "jogo" Baleia Azul PL 169/2017; Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra no calendário municipal do Rio PL 103/2017; Revogação da diminuição da taxa de ISS sobre empresas de ônibus PL 101/2017; Dia Municipal da Visibilidade Lésbica PL 82/2017; Dia da Luta Contra a Homofobia, Lesbofobia, Bifobia e Transfobia PL 72/2017; Programa de Creches Noturnas para crianças de seis meses a cinco anos PL 17/2017; Ampliação do acesso ao aborto legal e Juridicamente Autorizado 16/2017; Parto humanizado e prevenção da mortalidade materna PL 6.282/2017.

Marielle nasceu e cresceu no complexo da Maré, no Rio de Janeiro, foi mãe adolescente, passou por um casamento heterossexual, impulsionado pela família católica, no qual sofreu violência doméstica. Neste período Marielle afastou-se dos estudos e entrou para as estatísticas de estudantes evadidas do ambiente escolar. Assim que se separou, voltou a estudar, ingressou num cursinho pré-vestibular popular e logo pode dar início sua trajetória acadêmica no curso de Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com uma bolsa integral obtida pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). Após a conclusão da graduação em Ciências Sociais, passou no mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF) na qual defendeu a dissertação intitulada "UPP - A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro"[1].

Quando Luyara tinha cinco anos Marielle conheceu seu grande amor, a arquiteta Monica Benício. As duas tinham planos de casar em 2019, quando completariam 14 anos de relacionamento. Na matéria “A História de amor interrompida de Marielle e Monica” feita recentemente com Monica, ela explica que durante os primeiros sete meses, não contaram para ninguém sobre a relação. Só puderam assumir o namoro dois anos depois.

“Quando a gente assumiu para a família, foi rejeição para todos os lados. Foi muito difícil. Você não tem auxílio na rua, entre amigos, e quando mesmo a família não te dá suporte, o mundo vira um lugar bastante complicado.” [2]  

Mesmo com todas as barreiras ocasionadas pelo preconceito e intolerância dentro e fora do ambiente familiar, “como figura pública, Marielle não economizava declarações de amor e postagens com selfies sorridentes ao lado da mulher nas redes sociais.” Além disso, inúmeras vezes Marielle utilizava o hashtag #M2 – como referência às iniciais do casal – e #nossasfamiliasexistem. Nesta entrevista, Monica afirma com convicção que o assassinato de sua parceira foi um crime político.

Marielle Franco foi morta brutalmente com três tiros na cabeça e um no pescoço. Anderson Pedro Mathias Gomes, motorista do veículo em que a vereadora se encontrava também foi assassinado. No dia 14 de março de 2018, tentaram silenciar uma voz que já não poderiam calar, porque seus projetos, suas ideias, ações e reivindicações sempre foram coletivas e já estavam amplamente difundidas.

A execução de Marielle foi um crime contra a democracia, contra o direito de existir das comunidades historicamente excluídas e marginalizadas no Brasil. Sua morte truculenta foi um aviso para todas e todos aqueles que lutam por dignidade e equidade se manterem em silêncio. Entretanto, esta tentativa de aniquilamento das resistências falhou. A sensação de medo instaurada em todo o Brasil e em mais de oito países pelo mundo, diferentemente do que os mandantes deste crime pretendiam, não paralisou ou estagnou as pessoas. Pelo contrário, o desejo de mudança e a vontade de continuar a luta que Marielle Franco iniciou se potencializaram. Uma mobilização mundial ocorreu horas após as mortes de Marielle e Anderson. Foram centenas de manifestações, marchas e concentrações onde entoavam-se gritos por justiça. Milhares de pessoas, com cartazes, faixas, megafones, microfones, armaram-se com a munição que mais amedronta qualquer estrutura de poder: a consciência dos problemas sociais, raciais, de gênero e de diversidade sexual. Desataca-se aqui, as centenas de mulheres negras que foram para as ruas prestar homenagem a Marielle, que mesmo com toda a dor, sentimento de impotência e lágrimas nos olhos, não se calaram.  

O crime está em processo de investigação na Polícia Federal. No entanto, o fato é que quem disparou, na realidade, obedece a ordens e muitas vezes acaba morrendo também. Por isso, a pergunta que devemos fazer é: “Quem mandou matar Marielle”? Até quando estaremos nesta guerra, onde homens e mulheres negras de periferia são alvejados ou desaparecem numa total impunidade? Até quando teremos que aguentar a naturalização das estatísticas de mortes autorizadas pelo Estado?

Marielle representava milhares de vozes. Mulher negra, intelectual, favelada, com uma relação lésbica assumida, criadora de inúmeros Projetos de Lei, com poder de decisão política, tornou-se uma pedra no sapato. Em seu último pronunciamento no Plenário da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, Marielle fez uma fala sobre o Dia Internacional da Mulher e mencionou o quão difícil é a luta para mulheres que propõe uma outra forma de fazer política. Em meio a burburinhos e desrespeito de vereadores presentes, ela reivindica o seu lugar de fala lembra a todos os presentes:  

 

“Em relação as mulheres negras, por exemplo, ainda tem homem que tem a ousadia de falar do quadril largo, da bunda grande, do corpo, como se a gente ainda estivesse no período de escravidão. Não estamos, meus queridos! Estamos no processo democrático. Vai ter que aturar mulher negra, trans, lésbica, ocupando a diversidade dos espaços!” [3]

 

Marielle enfrentou os olhares machistas, racistas, classistas e lesbofóbicos. Ela marchou, gritou, lutou, transformou realidades, abriu portas e encorajou mulheres negras das favelas, lésbicas e bissexuais negras, mães negras, jovens negros e também familiares de policiais a lutarem contra polícia militarizada. Em sua dissertação de mestrado defendida em 2014, na UFF, Marielle afirma:

 

As marcas dos homicídios não estão presentes apenas nas pesquisas, nos números, nos indicadores. Elas estão presentes sobretudo no peito de cada mãe de morador de favela ou mãe de policial que tenha perdido a vida. Nenhuma desculpa pública, seja governamental ou não, oficial ou não, é capaz de acalentar as mães que perderam seus filhos. (Franco, 2014, p. 101)

 

Marielle estimulou de variadas formas a reflexão lúcida sobre os sistemas de controle dos corpos mais vulneráveis e considerados descartáveis na sociedade. Este foi o principal motivo que a tornou um alvo: ser sinônimo de resiliência e revolução.

“Vocês querem nos matar, nos controlar / Vocês não vão nos calar!” este trecho faz parte da letra da música “Marielle Franco (part. Heavy Baile)” que MC Carol compôs em homenagem a vereadora logo após a sua execução. Pela memória de Marielle, gritamos: chega! Não nos calaremos mais. Marielle Franco, presente! Anderson Gomes, presente! Hoje e sempre.

 

Geanine Escobar 

 

Geanine Escobar é Doutoranda do Programa Doutoral em Estudos Culturais - Universidades de Aveiro e do Minho - Portugal e Bolsista CAPES - Doutorado Pleno no Exterior. Mestra em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Graduada em Bacharelado em Conservação e Restauro de Bens Culturais Móveis pela mesma instituição. É Coordenadora da Área de Memória e Patrimônio da ABPN - Associação Brasileira de Pesquisadores (as) Negros (as), assim como pesquisadora associada e membro do Comitê Científico. Atualmente compõe o Grupo de Investigação em Gênero e Performance organizado pelo Doutoramento em Estudos Culturais - Universidade de Aveiro e integra o Coletivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras – Lisboa.

 

[1] FRANCO, Marielle. Dissertação de mestrado: "UPP – a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro". Repositório Institucional da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2014.

 

[2] Entrevista com Monica Benício - “A História de amor interrompida de Marielle e Monica” concedida a Júlia Dias Carneiro da BBC - Colaboração de Rafael Barifouse, da BBC Brasil em São Paulo. Disponível: <https://www.geledes.org.br/historia-de-amor-interrompida-de-marielle-e-monica/>. Acedido em 10/04/2018.

 

[3] Último pronunciamento de Marielle Franco antes de ser executada no Rio de Janeiro. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Da7dqCqEJmA&t=312s>. Acedido em 11/04/208.

 

Este fim-de-semana assinala-se um mês da execução de Marielle em Lisboa. Evento no Facebook aqui.