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Rita Alcaire: “A assexualidade é uma orientação sexual, não é uma escolha”

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Para compreender a assexualidade é preciso quebrar a ideia de que o desejo sexual é intrínseco a todos os seres humanos. Tem de se perceber que a assexualidade é uma das formas da sexualidade humana se manifestar, completamente contrária ao celibato (que é uma escolha) consistindo a assexualidade, de uma forma geral, na falta da atracção sexual por outras pessoas.

Usa-se muito frequentemente, em tom de brincadeira, a ideia de que os assexuais preferem bolo a sexo, estando muitas vezes retratada esta metáfora em eventos e marchas LGBTIA+. Para ajudar-nos a esclarecer o conceito e também para tirar algumas dúvidas sobre este tema que, pelo menos no nosso país, ainda é para muitos desconhecido ou gera dúvidas, entrevistámos Rita Alcaire, que está a desenvolver, na Universidade de Coimbra, para o seu doutoramento um projecto colaborativo de investigação-acção intitulado “The Asexual Revolution: discussing asexuality through the lens of human rights” (“A revolução Assexual: discutindo assexualidade sobre o ponto de vista dos direitos humanos”), que pode ser consultado em www.revolucaoassexual.pt

 

dezanove: Rita, afinal o que é ser assexual?

Rita Alcaire: Assexual é uma designação que diz respeito a uma realidade ampla e complexa. Quando usamos o termo assexual, estamos a referir-nos a alguém que não sente atracção sexual por outras pessoas, independentemente do seu género, e que pode ou não ter desejo ou interesse em actividade sexual. Dentro desta designação cabem inúmeras realidades, experiências, identidades, comportamentos e formas de viver a intimidade. É um espectro bastante alargado.

 

Pode, portanto, considerar-se a assexualidade uma orientação sexual?

A assexualidade é uma orientação sexual. À semelhança da homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade e panssexualidade, a assexualidade também não é uma escolha. As pessoas assexuais podem sentir atracção romântica, estética, intelectual, social, emocional por outras, sem que necessariamente sintam atracção sexual por elas. Isto não invalida que possam construir laços profundos e relações fortes de amor, intimidade e cumplicidade. Não impede também que tenham contactos românticos ou até sexuais. Depende da forma como cada pessoa sente que é melhor para si no âmbito das relações que estabelece. Aquilo que somos ensinados a pensar desde cedo é que estes diferentes tipos de atracção vêm sempre juntas, ou mais ainda, são uma e a mesma coisa, um todo. O que a assexualidade nos vem mostrar é que não é necessariamente assim.

 

Mas nem todos os assexuais sentem ou vivem a assexualidade da mesma maneira, correcto?

Trata-se de um espectro em que cabem inúmeras experiências, identidades, comportamentos. Há pessoas que estabelecem relações afectivas com outras pessoas assexuais. Há quem esteja numa relação com pessoas que não são assexuais (referidas pela comunidade como allosexuais). Há pessoas que não desejam envolver-se em relações. Dentro das relações, a presença de relações sexuais e de quaisquer outras questões são negociadas, faladas, integradas ou não de acordo com aquilo que faz sentido naquela relação e para aquelas pessoas. Há quem deseje ter filhos e formar família, há quem inclua BDSM no seu reportório íntimo. A multiplicidade e diversidade de experiências é interminável.

 

Muita gente acha que quem é assexual tem algum distúrbio ou patologia porque supostamente sentir atracção sexual é a norma. Queres falar-nos um pouco sobre isto?

A assexualidade não é nem ocorre na sequência de uma condição médica ou de um trauma, embora seja uma associação feita muitas vezes. Alguns estudos dão conta de que pessoas assexuais apresentam taxas elevadas de angústia e de sintomas como ansiedade, mas não mais elevadas do que é encontrado na população em geral. As evidências disponíveis sugerem também que esses sentimentos são um resultado do preconceito e da discriminação contra assexuais (que foi documentado na pesquisa) e não uma indicação de qualquer perturbação psicológica subjacente. A pesquisa disponível e os relatos de pessoas que se identificam como assexuais mostram que não existe sofrimento associado à ausência de atracção sexual e suportam a ideia de que existe bastante conforto e sentimentos de alívio quando o conceito de assexualidade é encontrado e quando descobrem que a sua experiência é partilhada com muitas outras pessoas. De igual forma, a evidência empírica não suporta a ideia de que se trata de pessoas com visões negativas da sexualidade (repulsa por comportamentos considerados sexuais, linguagem explícita ou imagens de corpos nus ou de genitais) e há assexuais que se identificam como sex-positive.

 

Quais as maiores dificuldades que um assexual encontra no dia-a-dia ou até mesmo numa relação?

Os desafios e dificuldades relatadas são semelhantes aos de outras pessoas que não se identifiquem com a sexualidade normativa, neste caso com o acrescento de se tratar de uma sexualidade praticamente desconhecida: a incompreensão por parte de parceiros e de famílias, o encaminhamento para profissionais de saúde e a possibilidade de serem alvo de violência verbal, psicológica, física ou simbólica. No trabalho de investigação que fiz, encontrei muitos relatos de experiências de compreensão por parte de quem está na rede afectiva e familiar de pessoas que se identificam como assexuais e de relações íntimas duradouras e funcionais. Felizmente, a parte negativa não é a regra.

 

No trabalho de investigação que fiz, encontrei muitos relatos de experiências de compreensão por parte de quem está na rede afectiva e familiar de pessoas que se identificam como assexuais e de relações íntimas duradouras e funcionais

 

Já existe nos EUA o AVEN - Asexual Visibility and Education Network. Como surgiu o grupo no Facebook “Assexuais em Portugal”?

Quando me comecei a interessar pelo tema e a fazer pesquisas na internet em diferentes sites, chats, fóruns, reparei que a informação que encontrava em português era produzida e consumida no Brasil. Quando surgiam portugueses nesses espaços de conversa e de troca de informação era, regra geral, a perguntar se havia mais alguém de Portugal para poderem conversar. E por mais que procurasse, não encontrava efectivamente um espaço onde pessoas portuguesas pudessem partilhar experiências. Foi por isso que criei a página Assexuais em Portugal no Facebook, com um nome que fosse o mais descritivo possível. Praticamente não foi preciso divulgá-la, começou de imediato a crescer em bola de neve. Tem, neste momento, cerca de 1300 fãs, e é um espaço onde se dá conta de conteúdos de interesse relacionados com assexualidade e existe um grupo de Facebook com o mesmo nome que reúne cerca de quatro dezenas de pessoas que partilham experiências, dúvidas, onde são organizadas actividades e onde se dá resposta a solicitações para eventos e reportagens.

 

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A assexualidade tem a sua própria bandeira. Podes explicar-nos o seu significado?

Havia por parte da comunidade assexual internacional o desejo de ter um símbolo que representasse todas as pessoas dentro do espectro, - incluindo as pessoas arromânticas - e que pudesse ser usado em eventos. Foram então apresentados inúmeros designs por parte de utilizadores de sites ligados a assexualidade, sob o olho atento e aglutinador da AVEN, que depois foram a votos. A bandeira vencedora é a que se conhece hoje, com quatro riscas horizontais de cores diferentes: a preta, que representa a assexualidade; a cinzenta, que representa a grey-assexualidade e a demissexualidade (pessoas que se sentem atraídas sexualmente por outras em circunstâncias que não são muito claras e pessoas que só sentem atracção sexual por outras quando constroem com elas vínculos emocionais fortes, respectivamente), a branca, para parceiros e aliados; e a roxa, que representa a comunidade.

 

Sentes que a nossa sociedade é muito sexual?

Existe uma presença muito forte de imagens, palavras e comportamentos que são considerados sexuais ao nosso redor: da publicidade à música e ao cinema, no discurso da saúde e do bem-estar, no discurso jurídico, etc. Há uma tentativa de forjar uma relação inseparável entre a prática sexual constante e o que significa ser humano saudável e poderoso. Há um reforço intenso no discurso do prazer e do bem-estar (emocional, físico, psicológico) e tudo o que cai fora desse guião é considerado errado, doente, um falhanço.

 

Há um reforço intenso no discurso do prazer e do bem-estar (emocional, físico, psicológico) e tudo o que cai fora desse guião é considerado errado, doente, um falhanço.

 

O que falta fazer pela visibilidade assexual em Portugal?

É importante referir que existem actualmente pessoas muito motivadas para levar a efeito iniciativas que promovam o conhecimento sobre a diversidade sexual humana, pela promoção da educação e visibilidade assexual e pela promoção dos direitos humanos em geral. Algumas delas estão a organizar-se em grupos e a fazer um activismo significativo e informado como é o caso do GAAP – Grupo Assexual e Arromântico Português. Isso é um ponto de partida muito forte. Apesar deste trabalho de activismo e do crescente interesse sobre o tema nos media, ainda se trata de um conceito largamente desconhecido por parte da população em geral. Por isso, é importante introduzi-lo na discussão pública, nas escolas, na ficção, por aí fora. Acima de tudo, é importante escutar quem deve ter controlo sobre a sua narrativa – as pessoas que se identificam como assexuais – e conhecer e partilhar testemunhos da sua experiência vivida. Mais, quaisquer actividades que contribuam para o questionamento do modelo vigente de sexualidade – heteronormativo, monogâmico, coital – mostrando que não traduz toda a diversidade sexual humana existente, que sempre foi fortemente influenciada pela medicina e pela religião e mostrar o dano e o sofrimento que isso causa, são muito bem-vindas.

 

Sofia Seno

 

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