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A (des) Construção do género e das hierarquias de poder

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Quando nascemos é promovido um discurso de diferença em torno do nosso sexo biológico. Alimentado no meio familiar, profissional e jurídico pela cultura de massas, publicidade ou até pela medicina, esse discurso normaliza o que deve ser um homem ou uma mulher: quem nasce com uma vagina deverá ser obediente, ter recato  e  encontrar na maternidade o exponente máximo da sua realização; quem nasce com um pénis, deverá ser audaz, dominar pela força ou pela autoridade, ter mulher, filhos, e como principal foco a carreira profissional.

Ao discurso comportamental criado em torno do sexo biológico dá-se o nome de género. Está de tal forma naturalizado que a maioria das pessoas, muito longe de o questionar, nele vê a dimensão estruturante da sua identidade. 

A construção desta narrativa do género não é inocente. Culturalmente construído, o género encaminha homens e mulheres para diferentes escolhas que os remetem para diferentes posições hierárquicas. O mundo do trabalho é um bom espelho dessa hierarquização. As mulheres são encaminhadas culturalmente para profissões mal remuneradas, auxiliares/cuidadoras geriátricas, recepcionistas, balconistas, operadoras de caixa, empregadas de limpeza, costureiras, engomadeiras, cozinheiras. Estas profissões são inclusive mal pagas, não por as tarefas inerentes a cada uma delas terem um grau de dificuldade baixo, mas precisamente por serem efectuadas por mulheres. Tome-se como exemplo o trabalho de uma costureira e o de um electricista medianos. Ambos exigem conhecimentos técnicos e perícia, e todavia um é mais bem pago do que o outro apenas pela diferença de género de quem tipicamente o faz. O trabalho não pago (cuidado dos filhos, casa, idosos) é também remetido maioritariamente para as mulheres. As panelas e os tachos, os carrinhos de bebés, as bonecas continuam a condicionar que em adultas sejam elas, em primeira instância, a absorver para si esta dimensão. Segundo um estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, a mulher efectua, em média, 74% das tarefas domésticas, enquanto o homem com quem vive efectua, em média, 23%. Em suma, o trabalho direccionado às mulheres ou é mal pago ou nem sequer é pago. Esta desvalorização do trabalho tipicamente efectuado pelas mulheres remete-as para situações de desvantagem económica e consequente subalternidade em relação aos homens. É desta forma que os mecanismos de poder e a hierarquia entre homens e mulheres são alimentados. 


A mulher efectua, em média, 74% das tarefas domésticas, enquanto o homem com quem vive efectua, em média, 23%.


Uma das minhas primeiras reflexões, ainda criança, foi sobre a eventual preponderância que o meu sexo teria sobre  a pessoa que viria a ser. Desde a escolha do brinquedo preferido, à futura profissão ou às relações amorosas. Será que o facto de ter nascido com o vagina, determinariam as minhas preferências? Seria um órgão do corpo capaz de comandar a minha vida? As brincadeiras das meninas pareciam-me aborrecidas e as roupas por elas usadas desconfortáveis. As profissões tendencialmente efectuadas por mulheres  não me seduziam.  Na vertente emocional as raparigas sempre me atraiam mais que os rapazes. Ou seja, quase todas minhas preferências divergiam do que é esperado de uma mulher. Apesar disso, vivia muito bem com o meu órgão sexual e identificava-me como mulher. Teria que mudar de gostos por ter uma vagina? Teria de deixar de ter uma vagina para poder viver de acordo com os meus gostos? Feita a reflexão, conclui que não. O sexo não tem de determinar aquilo que somos. E se nos sentirmos bem com o corpo que temos e com a nossa identidade, não temos de nos ajustar às expectativas de género construído em volta do nosso órgão sexual. Existem várias formas de ser mulher ou homem, não temos de encaixar no modelo normativo do género. Sendo o género uma construção social, o mesmo pode ser desconstruído.


O sexo não tem de determinar aquilo que somos. E se nos sentirmos bem com o corpo que temos e com a nossa identidade, não temos de nos ajustar às expectativas de género construído em volta do nosso órgão sexual.


Creio que as pessoas LGBTI+ são discriminadas exactamente por, no geral,  questionarem e serem disruptivas para o conceito de género. As lésbicas, por exemplo, não são as mulheres que à nascença se esperou que fossem, não se submetem aos homens e sua capacidade de procriar não está na base das suas relações. Contribuem para a desconstrução do género feminino. Os homens gays também são disruptivos na construção do género, porque reescrevem o conceito de masculinidade ao não necessitarem ser validados ao lado de uma mulher. As pessoas bi e as pessoas não binárias subvertem a relação sexo/género e desejo, baralham estes conceitos enraizados na sociedade.


As pessoas LGBTI+ são discriminadas exactamente por, no geral,  questionarem e serem disruptivas para o conceito de género.


As pessoas LGBTI+ tendem a não obedecer a ditaduras de género, desconstruindo assim o conceito de género, que é a base das hierarquias entre pessoas. São por isso, a par das mulheres, remetido/as para situações de desvantagem social. Se o contributo para desconstrução do conceito de género é a base da nossa discriminação, é também com essa desconstrução que contribuímos para o enfraquecimento do patriarcado, para uma sociedade mais justa e igualitária.

 

Daniela Alves Ferreira