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A história inspiradora de Elivelton: "Não deixe estigmas sociais impedir a construção de sonhos"

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Jovem gay criado em comunidade carente, realiza o sonho de estudar em uma universidade pública, superando todos os tipos de preconceito.

 

Elivelton Mota viveu por anos em uma das maiores favelas da América Latina - a Rocinha. É homossexual, HIV+ e também teve que lidar com o preconceito. O futuro sociólogo tem muitos projetos de vida, dentre eles - implantar políticas públicas de uma realidade brasileira que ele conhece muito bem. Apesar da pouca idade, Elivelton já passou por muitas dificuldades na vida ao longo dos seus 25 anos. Nascido no Estado do Espírito Santo, em uma cidade quase divisa com a Bahia, o jovem cresceu na periferia de Contagem em Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais. Aos 18, ele deixou tudo pra trás e veio para o  Rio de Janeiro com vários planos: conhecer a mãe que praticamente era uma pessoa desconhecida em sua vida, participar dos Jogos Olímpicos e correr atrás dos seus objetivos. Morou com ela na favela da Rocinha, uma das maiores comunidades carentes da América Latina. Hoje, cursando sociologia em uma universidade pública, Elivelton realizou um dos seus grandes sonhos, também demonstrou coragem quando assumiu ser soropositivo em seu canal do Youtube. O jovem segue lutando, trabalhando, estudando e sendo membro da Global Shapers que resumindo em poucas palavras seria uma organização para jovens líderes, pessoas que tem o dom da palavra. E ele quer falar, quer mostrar para o mundo que mesmo diante de tantas limitações, ele correu atrás e hoje vê que valeu a pena e tem orgulho da sua história.
 
 
dezanove: Como foi a sua infância? Você teve uma vida muito difícil?
Elivelton Mota: Trabalho desde os 14 anos, começando como jovem aprendiz, também trabalhei com o meu pai na rua. Sendo ele camelô (vendedor ambulante de rua) e eu o ajudava na venda dos doces, cresci vendo episódios tristes com meu pai como assaltos etc.
 
Quando você notou que a sua vida tinha dado um salto?
Minha vida mudou quando eu comecei a participar de um pré vestibular comunitário (um curso de preparação para jovens carentes que pretendem tentar uma vaga na universidade pública, sendo gratuito o acesso), e isso começou através de dois amigos 
que estudavam já em uma Universidade pública, e eu me perguntava "por que eles tinham os mesmos acessos e eu não?" Eles eram brancos... enfim cresceram rodeados de todos os privilégios, eu ficava me indagando sobre isso e decidi buscar isso pra mim. 
Me inscrevi nesse pré vestibular comunitário, isso em 2018, eu ia de bicicleta pra cima e pra baixo, e era longe, muitos quilómetros de distância. Meu professor de redação foi a primeira pessoa a me entregar um livro de poesia, eu nunca tinha ganhado um antes.
 
Estudar em uma Universidade pública era um sonho?
Sim. Eu queria muito entrar numa universidade pública, era um sonho, mas eu precisava morar em Niterói (onde a Universidade se encontra), mas não conseguia arrumar emprego, até que consegui por acaso um trabalho workaway (troca de trabalho por hospedagem) e comecei trabalhando em um hostel próximo da Universidade em troca de moradia, pra mim aquilo era um imtercâmbio cultural.
 
Quando você chegou no Rio de Janeiro e como foi viver em uma das maiores favelas da América Latina?
Cheguei no Rio em 2013, eu conheço bem a Rocinha e me considero cria dela, no sentido de viver no Rio de Janeiro. Tudo que vivi de bom e de ruim foi na Rocinha, aliás eu sempre sou grato, prefiro ser grato. Apesar de hoje morar em outro local perto da minha Universidade, eu sempre vou a Rocinha quando eu posso para visitar o meu padrasto que está doente e a pessoa que  me relaciono atualmente também mora lá. Então, eu conheço bem a realidade da comunidade.
 
Você comentou que há pouco tempo passou por uma situação muito difícil envolvendo água contaminada da cidade e o calor excessivo do Rio...
Verdade. Eu tinha um ritmo certo de alimentação, nutrição e quebrei esse ritmo quando fui explorar territórios como sociólogo (estudante) em São Paulo e Minas Gerais. As viagens eram cansativas, e aí quando voltei para o Rio, no ápice do verão, na favela da Rocinha, ficando na casa de uma amiga, eu passei muito mal e tive que ser levado para uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), e não há antiretroviral que resista isso, meu organismo estava reagindo a uma série de acontecimentos que eu havia feito, aliado a esse problema da água.
 
Como é ser gay e portador do vírus HIV em uma comunidade carente onde as pessoas não tem muito acesso a informação, e o preconceito muitas vezes impera?
A comunidade na Rocinha assim como muitas outras, é o Brasil periférico, existe um estereótipo sobre isso. Dentro da comunidade existe suas próprias intersecções e perfis de moradores, mas a maioria tem preconceito com quem é homossexual e com quem tem HIV, porque essas pessoas não tem acesso a informação. Nunca fui alvo de haters porque eu sempre vivi dentro de uma comunidade mas muito na minha, então eu não me misturava muito com as outras pessoas, no sentido de não expor demais a minha vida pessoal dentro daquela comunidade.
 
O maior preconceito que existe no Brasil é o racial, orientação sexual ou social?
O maior preconceito no Brasil acredito que seja de raça e nível social, minha orientação sexual é mais aceita, porque em todos os níveis sociais tem perfis de orientação sexual (gays, lésbicas etc).
 
Você se considera um vencedor?
O sistema é cruel e eu consegui chegar a coisas que eu almejava, espaços que eu queria estar, tive que correr atrás de muita coisa, e eu chorava as vezes, "por que eu tô fazendo isso? Por que eu tô querendo estudar? Por que eu quero entrar em uma Universidade pública?". E eu ainda tinha uma vida em que ia a festas sem parar, não tinha controle de dados sobre mim, não entendia sobre o comportamento.
 
Você é soro+ há 2 anos, falar sobre a pessoa que te contaminou é um tema delicado para você?
As pessoas se relacionam em qualquer parte do planeta, eu sempre cresci sem base então, quem me contaminou? Não é uma pergunta pertinente porque, falar quem me contaminou quando eu já fiquei com várias pessoas, me relacionei com muita gente, tanto na vida, trabalho e estudos.
 
Fale um pouco sobre sua participação no Global Shapers, o que seria exatamente isso?
Eu participo do GlobalShapers, que é uma entidade criada e apoiada pelo Fórum Econômico Mundial para jovens líderes até 30 anos. Um jovem líder é aquele que tem a cultura do diálogo, cultura da empatia, cultura de impactar de alguma forma um indivíduo ou uma sociedade.  Eu sou um Globalshaper por conta da Tabata Amaral (Deputada Federal), eu conheci a história dela quando eu estava trabalhando nos Jogos  Olímpicos da Juventude de Buenos Aires em 2018 e detalhe eu fui de ônibus pra lá, pra participar dos jogos, e conheci a historia da Tabata Amaral, que é uma parlamentar de São Paulo do PDT, Deputada Federal que cresceu na periferia pobre de São Paulo e foi estudar em Harvard. Eu achei a história dela parecida com a minha no sentido do espaço que cresceu, quase a minha idade, e isso me motivou muito e aí soube que ela é uma GlobalShaper.
 
Você conhece pessoas inspiradoras lá e fiz muita coisa também no meu primeiro ano de atividade no GS, muitas palestras, reuniões, e detalhe - eles me deram suporte, me acolheram, quando eu tive aquele problema da água contaminada na cidade. O GS gera impacto na vida de muitos jovens. Temos um perfil social de muita disparidade, de muita desigualdade no Rio, as ações do GS são também para incentivar o empreendedorismo de nós jovens no futuro ou até mesmo no presente.
 
Como é a sua relação com a sua família? E o que curte fazer além de ir a Universidade?
A minha relação com a minha família é ótima, maravilhosa, eu a amo muito. Eu ia muito em festas, batia cartão sempre (uma expressão
que significa ir com frequência), e me relacionava com vários perfis de pessoa.
 
Como foi se descobrir HIV+?
Quando eu descobri, foi bem no começo, e foi um ex-relacionamento meu que me incentivou a fazer o exame , ele já estudava em Universidade enfim, e ele ficou surpreso quando eu disse o resultado. Eu não fiquei nervoso na hora que recebi o resultado do exame através de uma enfermeira que me perguntou "deu positivo e aí?" e eu agi com naturalidade. Eu estava numa fase de festas, amigos, querendo viver, isso foi em 2018. Repeti os exames e quando fui buscar o resultado já ciente havia dado positivo antes, a médica me informou que a minha carga viral estava altíssima, e eu pensei "Meu Deus, se eu não tomar uma atitude, eu vou contrair a doença mesmo (AIDS)", e pensei será que vale a pena de fato essa doutrina que eu havia adotado de curtir, curtir intensamente. E pensei "eu vou mudar de vida".
A ficha caiu, naquele momento que vi a carga viral altíssima eu pensei "eu amo viver, é tão bom respirar" comecei a ver os detalhes do meu dia a dia, o real valor que eu tenho para o mundo e aí começou a transformação da minha pessoa.
 
O canal no Youtube foi criado após o diagnóstico? Já foi alvo de preconceito?
O canal do youtube veio após o HIV. Eu já sofri muito, muito preconceito, eu lembro que amigos do meu nicho, amigos do pré-vestibular comunitário, alguns vinham falar comigo e outros viravam a cara e não conversavam mais. Existe muito preconceito ainda mas vou driblando as situações sendo diplomático. Sou grato a tudo que me aconteceu e me sinto realizado no sentido de maturidade plena. Cuidem-se, usem camisinha!
 

Você criou o canal para falar sobre a sua sorologia?
Sou gay, o foco do canal não é a minha sorologia, mas uma vontade dentro de mim de mudar alguma coisa, mas eu não sabia o que era. Talvez esse processo de construção do indivíduo que a gente tenta construir, os vídeos foram uma válvula de escape para mim.
Muitas pessoas disseram que eu estava me expondo demais com o canal (sobre a sorologia), e depois que eu entrei na Universidade muita gente também não sabe que eu já publiquei a minha história... enfim. Com as pessoas que me relaciono na Universidade, alguns tem esse distanciamento também, e eu entendo principalmente os alunos jovens, tem gente da minha turma de 18 anos. Meu canal no Youtube me fez acreditar que eu ajudo muita gente.

Já foi vítima de preconceito racial? E quanto a ser soro+?
Já sofri preconceito racial, já sofri muito que hoje eu já sou "cascudo" (experiente) no assunto.  No meu último emprego, no vídeo do canal relatei que eu tinha suspeitas que minha chefe me demitiu porque ela tinha sido a primeira pessoa que eu contei sobre o HIV, e lembro que pouco tempo depois eu fui dispensado. No dia da rescisão, ela conversou comigo dizendo que não era por causa disso e os anos se passaram e eu percebo que foi devido ao HIV, por eu ter me declarado portador.
Não vejo como maldade mas como falta de informação, mas na época que eu declarei pra ela a minha sorologia, eu fui desligado pouco tempo depois.
 
Qual é o seu maior sonho?
Meu maior sonho nesse momento, bem... eu já tive depressão e eu não sonhava, fiquei um semestre numa solidão profunda, que me fez muito bem por sinal, mas não queria nenhum contato humano, eu estava ranzinza. Meu sonho é terminar o meu curso de Sociologia que é o meu dom e com saúde e sabedoria para viver com qualidade e dignidade, porque é muito desafiador encarar a realidade. 
Hoje olho pra trás e vejo que valeu muita a pena tudo que eu fiz. não tenho utopias com coisas materiais, sou agente do estado, espero criar muitas politicas públicas sobre coisas que eu já vivi por exemplo. Gosto de ser sociólogo, gosto de ler/escrever.
 

 
Já participou de projetos voluntários também?
Dou aulas de história em um pré vestibular comunitário como voluntário, e sempre quando eu posso eu faço alguma atividade voluntária. Ser voluntário é muito importante.
 
Qual é o seu trabalho atual?
Eu trabalho numa clínica de saúde, cujo o trabalho consegui através da startup Troca. Ela acolhe pessoas em situação de vulnerabiliade social e dá emprego junto a empresas que eles fazem parceria, (sejatroca.com) e através do criador da startup que eu consegui esse trabalho. Eu gosto de trabalhar, trabalhei nos Jogos Olímpicos e Para-Olímpicos e foi dessa forma que eu conheci o Rio, andando pra cima e pra baixo. Dei até entrevistas para emissoras internacionais porque eu era um dos poucos voluntários na época que morava na favela da Rocinha.
 
Você tem uma história de vida bacana e deve ter muito orgulho da sua trajetória.
Eu não criei uma história de vida pra mostrar que sou melhor que alguém, não é isso, é sobrevivência de você começar a ter novos valores, nova doutrina, nova esperança.
 
 
André Araújo, jornalista e consultor de turismo. Colaborador do dezanove.pt a partir do Brasil