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A interseccionalidade no poder judiciário português: que caminho?

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Em 1989, Kimberlé Crenshaw cunhou o termo interseccionalidade no artigo "Demarginalizing  the Intersecction of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Anti-Discrimination Doctrine"  analisando-a como se de uma metáfora se tratasse para representar as diversas camadas existentes  dos sistemas de opressão social, incidindo o seu estudo nas desigualdades de género, raça e classe: "a discriminação, tal como o trânsito num cruzamento, pode fluir numa direcção e pode fluir noutra. Se ocorrer um acidente num cruzamento, este pode ser causado pelos carros que circulam  em várias direcções e, por vezes, em todas elas.

Da mesma forma, se uma mulher negra é prejudicada por estar num cruzamento, o preconceito pode resultar em discriminação sexual ou racial". Em Portugal, a integração da interseccionalidade tem sido  apresentada como um desafio complexo e necessário, apesar de algum avanço normativo que apontam nessa direcção. Como evidenciam as leis portuguesas relacionadas com a igualdade de género, a prática judicial está longe de reconhecer e abordar a discriminação interseccional de  forma efectiva. A aplicação de uma perspectiva interseccional na esfera judiciária requer desafios. A realidade mostra uma lacuna significativa entre os regulamentos existentes e a sua  implementação prática. A este respeito, vale a pena ter em conta o relatório "CEDAW: o que falta  fazer em Portugal 2022. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres"da Plataforma Portuguesa para os Direitos das mulheres, de Agosto de 2023,  bem como o relatório do Comité (CEDAW/C/PRT/10) , e as "Observações finais sobre o décimo  relatório periódico de Portugal", especificamente, os parágrafos 10, 14, 16, 22, 30, 34 que  destacam a preocupação com a falta de aplicação efectiva da interseccionalidade na protecção das  mulheres que sofrem discriminação interseccional, preocupação sobre a falta de aplicação das linhas orientadoras do Comité CEDAW (Comité para a eliminação da discriminação contra as Mulheres) nas regiões autónomas da Madeira e Açores (artigos 8º e 9º). Por exemplo, Kimberlé  Crenshaw no seu artigo destaca que " (...) nos casos de discriminação racial, a discriminação tende  a ser vista em função do género ou da classe das pessoas negras privilegiadas; nos casos de  discriminação sexual, o enfoque é colocado em função da raça ou da classe das mulheres privilegiadas. Este enfoque nos membros mais privilegiados do grupo marginaliza os que estão  sujeitos a múltiplas opressões e obscurece as reivindicações que não podem ser entendidas como  resultantes de fontes distintas de discriminação". A autora ainda sugere que um enfoque deste tipo  é dirigido aos/às membros/membras dos grupos privilegiados que acabam por criar "uma análise  distorcida do racismo e do sexismo porque as concepções operativas de raça e género passam a basear-se em experiências que, na verdade, representam apenas um subconjunto de um fenómeno  muito mais complexo".  

Assim, e remontando ao caso português, o poder judiciário, apesar de possuir leis que abordam a  igualdade de género numa perspectiva interseccional, enfrenta obstáculos significativos, muitos  dos quais incluem a resistência ao reconhecimento da discriminação interseccional e à adopção de  uma perspectiva que proteja todas as mulheres vítimas de violações de direitos. Em primeiro lugar,  existe uma resistência enraizada na cultura judicial que dificulta a integração de abordagens mais  complexas, como a interseccional; as estruturas e práticas enraizadas nos tribunais reforçam  frequentemente estereótipos e padrões de pensamento que obviam às complexidades da  discriminação interseccional. Além disso, a falta de formação adequada e de sensibilização entre  os profissionais do sistema de justiça contribui para perpetuar este fosso entre a teoria e a prática,  e a ausência de avaliações de impacto exaustivas das leis, particularmente em áreas cruciais como  o acesso à justiça para as mulheres refugiadas, as mulheres migrantes e as vítimas de  discriminação interseccional, reflectem uma lacuna grave na aplicação efectiva da  interseccionalidade na lei. 

Para resolver esta questão, são necessárias acções abrangentes, pelo que é imperativo implementar  programas de formação e sensibilização para profissionais do sistema judiciário que incluam a  perspectiva interseccional; do mesmo modo, devem ser criados mecanismos para avaliar e monitorizar o impacto das leis em grupos vulneráveis, tais como mulheres refugiadas, migrantes  e mulheres afectadas por discriminação interseccional, tal como recomendado no relatório do  Comité CEDAW. Embora a legislação portuguesa tenha dado passos no sentido da inclusão da  interseccionalidade na esfera jurídica, a prática do sistema judiciário ainda tem um longo caminho  a percorrer para reconhecer e proteger efectivamente as mulheres vítimas de discriminação  interseccional, e a implementação de políticas de sensibilização, formação e avaliação é essencial  para colmatar esta lacuna entre a teoria e a prática no sistema judicial. 

Assim, a interseccionalidade deve ser eficazmente integrada no sistema judiciário porque se "a  experiência interseccional é maior do que a soma do racismo e do sexismo, qualquer análise que  não tenha em conta a interseccionalidade não pode abordar suficientemente a forma particular  como as mulheres negras são subordinadas" (Crenshaw, 1989).  

Nota: quero destacar o estudo de Kimberlé Crenshaw, em 2017 "Race to the Bottom", o estudo da mesma autora em 2002 "Documento para o encontro de especialistas em aspectos da  discriminação racial relativos ao género", o livro de Patricia Hill Collins "Bem mais que ideias:  a interseccionalidade como teoria social crítica" e a tese de mestrado de Bianka Zloccowick  Borner de Oliveira " Igualdade, Justiça Social e Interseccionalidade" que nos ajudam a  introduzir neste tema da interseccionalidade de forma tão minuciosa e pertinente.  

 

Mafalda Carvalho Cardoso, 

Aluna da Faculdade de Direito da Universidade do País Basco (UPV/EHU),  Licenciada em Ciência Política (Universidade de Lisboa) e doutoranda em Filosofia  (Universidade do Porto).