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Nem na mata se encontram histórias assim

"A morte de Gisberta representa o nosso fracasso político, individual e colectivo"

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A morte de Gisberta chegou como um murro no estômago – sem aviso, sem forma de nos protegermos da dor, sem recursos para interpretar aquilo que não podia se não causar-nos a maior perplexidade.

Nenhuma morte é igual a outra e todas as perdas são injustas e terríveis. A de Gisberta foi tudo isto e mais, porque nos confrontou com a nossa falta genérica de preparação para combater a transfobia, com a irresponsabilidade colectiva que se traduz na ausência histórica de educação sexual em meio escolar, com a desproteção de menores institucionalizados, com as escalas de valor e de prioridades que empurram as vidas das pessoas trans* para o fim factual do acrónimo LGBT.

Num primeiro momento o desconhecimento e as dúvidas caracterizaram a intervenção pública sobre o terrível acontecimento. Como se chamava, que identidade de género era a sua, a veracidade dos factos. Foi graças à acção concertada de activistas que a comunicação social passou a chamar Gisberta pelo nome que era o seu, e foi também graças ao movimento LGBT que um nome abstrato passou a ter rosto, um rosto sereno, promissor, contemplativo, finalmente visível através dos órgãos de comunicação social. A essa primeira batalha – a da invisibilidade – seguiram-se outras, que culminaram numa sentença que a todos/as nos entristece. Mas a vergonha que sentimos extravasa o tribunal e vai muito para além da sentença – é a vergonha da transfobia que não soubemos combater com maior veemência; é a vergonha de termos deixado morrer Gisberta que acumulava em si tantos factores de vulnerabilidade e ainda assim passou por entre as malhas da protecção social, sem qualquer sucesso. A morte de Gisberta representa o nosso fracasso político, individual e colectivo.

Mas a morte de Gisberta não foi em vão. Pelo contrário, na esteira da indignação e do luto, surgiram novas redes e solidariedades transnacionais, reativou-se o activismo à escala local, exigiram-se transformações jurídicas. Um ano após a morte de Gisberta, alterações ao Código Penal consideraram pela primeira vez os crimes de ódio com base na orientação sexual e o crime de violência doméstica passou a integrar a violência entre parceiros íntimos do mesmo sexo. Mas alterações mais profundas tardaram a surgir, algumas das quais incluídas na chamada Lei de Identidade de Género em 2011, e outras a carecer de atenção imediata. Fora da arena jurídica, os Estudos Transgénero, uma área com crescente consolidação noutros contextos geográficos, continuam com fraca manifestação na academia portuguesa, remetidos para um lugar residual, ilustrativo ou excecional (pese embora o carácter notável de algumas destas excepções, designadamente os trabalhos de Sandra Saleiro e de Carla Moleiro). O activismo trans*, pese embora a emergência de novas correntes, continua a debater-se com recursos frágeis e dificuldade em afirmar uma agenda sustentada em articulação com outros coletivos. Poderes fácticos como a Medicina ou os Media mantêm intervenções que desrespeitam as pessoas trans* nas suas escolhas autónomas, sobretudo quando estas decidem escapar às expectativas em torno de comportamentos e corpos binários. Por fazer, em grande medida, continua o processo de transformação sociocultural que permitirá acolher toda a diversidade de género enquanto expressão bem vinda da existência humana, rejeitando assim o guião da história única, binária, impossível. Este é um desafio para cada um/a de nós, nos contextos em que nos movemos, à escala daquilo que nos for possível, com a exigência de quem sabe que os Direitos Humanos não são negociáveis.

 

Ana Cristina Santos

Investigadora

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

Coordenadora do Projecto Internacional INTIMATE (www.ces.uc.pt/intimate)

Coordenadora do Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies