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Ana consultou o relógio de pulso: vinte para as quatro. Já não entra mais ninguém, pensou. Depois voltou-se para o interior do bar. Chegara aquela altura mágica da noite em que todos dançam com alguém – até os solitários dançam com a ilusão de alguém que não chegou a aparecer. Ana sorriu, já nostálgica. A sua intuição dizia-lhe que quando fechasse a porta do bar, dentro de meia hora, fechá-la-ia de vez.

 

Muitos a procuravam pelo seu especial talento preditivo. Quando era abordada à entrada por um rapaz ou rapariga, desejando saber da sua sorte nessa noite com outros rapazes ou raparigas, Ana encarava-os fixamente, calada e séria. Perante o seu olhar de oráculo, expunham as fraquezas a nu e revelavam as suas verdadeiras intenções. Ela meditava por um segundo, remexendo nas gavetas da memória por um pedido que lhe parecesse compatível e, achando-o, sussurrava ao ouvido do inquiridor, enquanto o conduzia para o vestíbulo: «ao fundo da pista, à direita». Era tudo o que podia dizer. Quem seguisse o seu conselho, e se a fortuna o favorecesse, voltaria de braço dado na noite seguinte, rapaz com rapaz, rapariga com rapariga.

Levantou alto o dedo indicador, onde usava um anel liso de prata. O sinal foi recebido pelo rapaz na cabine. Seria a última canção. Os acordes iniciais soaram e ela reconheceu-a logo, um hino disco de há muitos anos, apaixonado e solar, de noites em que uma jovem Ana se aventurava no mesmo bar onde agora era sacerdotisa. Muitos viam aquele sítio como um bazar de transacções efémeras, mas para Ana era como uma praia onde viajantes ancoravam os seus barcos e recuperavam do caminho, descansando ao sol na companhia de outros navegantes de muitas origens. Do seu altar na soleira da porta, admirava a brisa morna que sobre eles soprava naquela última noite: banhavam-se de música, de braços e de bocas, e saciavam muitas sedes antes de voltarem às ruas.

A canção termina, as luzes acendem-se. Ana vê sair o último par, duas raparigas de mãos atadas, e lembra-se de como uma delas, dois meses antes, lhe contara a promessa que fizera no início daquele novo ano, aliás, daquela nova e promissora década. Disse-lhe que em breve encontraria alguém que a fizesse feliz. Ana sorriu ao ouvi-la. Enquanto a passava pela porta, sentenciou: «no bar, do lado de cá». Depois hesitou, e com a mão no ombro daquela que a distraíra com a sua esperança tonta, apertou-a para si e acrescentou «Margarita». Quando ela chegou ao balcão, sentou-se e pediu a bebida. Ofereceu-a à rapariga ao seu lado. Ela sorriu com a surpresa e confessou-lhe que era a sua favorita.

Ana soube então que tinha ultrapassado os limites da revelação. O fim iminente talvez fosse um castigo pelo seu atrevimento. Voltou-se e reparou que as raparigas ainda por ali estavam – tinham encalhado num recanto da rua, perdidas em ternuras. Ao vê-las, lembrou-se da última canção e pareceu-lhe ouvir novamente os acordes felinos gemendo ao luar. E ocorreu-lhe uma bela profecia. Rodou a chave na fechadura, talvez pela última vez, e guardou-a no bolso.

 

Sirius

 

Este texto é ficção e pertence ao projecto Voz Arco-Íris.

 

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