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A Revolta do Homem Branco, de Susanne Kaiser: quando a masculinidade se torna uma arma

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É frequente olharmos para os comportamentos de ódio e projetá-los para um “outro” distante, como se acontecessem apenas noutros países ou noutros contextos. Em A Revolta do Homem Branco, Susanne Kaiser desmonta precisamente esse mito, ao mostrar como as sementes da misoginia e do ressentimento contra as mulheres se espalham por diferentes geografias — dos Estados Unidos à Alemanha, passando, naturalmente, por outros países da Europa onde o problema requer uma atenção urgente.

 

Susanne Kaiser é uma jornalista alemã com experiência internacional. Através de uma escrita viva, mergulha no universo do movimento “incel” - homens que se autodescrevem como “involuntariamente celibatários” - e expõe o modo como esse ressentimento profundo se transforma em violência, seja ela verbal ou física. Ao longo da leitura do livro ficamos a conhecer fóruns online onde o ódio contra as mulheres é cultivado como se fosse uma espécie de “identidade” de grupo, alimentada por um discurso de exclusividade e revolta. Esse retrato não é ficcional: são já muitas as provas concretas de que grupos e indivíduos radicalizados se articulam nas redes, trocam ideias, planeiam ações e, em alguns casos, chegam a agredir e a cometer assassinatos, quase sempre filmados pelos próprios e colocados nos seus perfis das redes sociais. Um dos nomes destacados por Kaiser é Eliot Rodger, autor do ataque em Isla Vista, Califórnia, em maio de 2014, que vitimou mortalmente seis pessoas e feriu catorze.

Apesar de a narrativa de Kaiser se concentrar em particular na realidade norte-americana e alemã, o livro revela um inquietante fenómeno que se está a alastrar sobretudo nos países democráticos. O livro oferece uma análise detalhada sobre como as redes sociais e fóruns na internet se tornam autênticas “câmaras de eco” para a frustração masculina. Jovens inseguros, que muitas vezes não encontram apoio familiar nem modelos positivos de masculinidade, acabam por se refugiar em comunidades que validam a sua revolta. A raiva é canalizada contra as mulheres, vistas como as culpadas pelo seu insucesso afectivo, e o que começa como uma simples frustração acaba por derivar numa retórica violenta.

Jovens inseguros, que muitas vezes não encontram apoio familiar nem modelos positivos de masculinidade, acabam por se refugiar em comunidades que validam a sua revolta. A raiva é canalizada contra as mulheres, vistas como as culpadas pelo seu insucesso afetivo, e o que começa como uma simples frustração acaba por derivar numa retórica violenta.

Nos capítulos iniciais, Kaiser contextualiza o fenómeno “incel”, reconstituindo a origem do termo e explicando como passou de um grupo relativamente pequeno e pouco articulado para uma rede global. Seguem-se capítulos que analisam a forma como esses grupos se organizam e radicalizam no espaço virtual. A autora traz dados concretos de estudos académicos, relatos de jovens envolvidos em fóruns misóginos e entrevistas com especialistas em saúde mental, revelando a complexa teia que liga a internet à vida real.

Este contexto não é alheio ao que se passa, por exemplo, em Portugal. Notícias como as relatadas pelo Público, que dão conta de pelo menos cinco mulheres mortas desde o início de 2025, lembram-nos que a violência de género não escolhe fronteiras. O ódio não fica confinado aos Estados Unidos nem às zonas mais conservadoras da Alemanha; ele emerge em diversas sociedades, onde a desigualdade de género e os discursos tóxicos podem encontrar terreno fértil.

Na parte central do livro, Susanne Kaiser aprofunda o que considera ser a “armadilha da masculinidade tóxica”: homens socializados para acreditar que demonstrar emoções é sinal de fraqueza, que veem na competição e na agressividade as únicas vias para ganhar estatuto. Ao mesmo tempo, muitos deles são efetivamente inseguros — procuram validação, mas não encontram espaços seguros onde possam falar das suas dúvidas e medos. Uma das faces mais visíveis é o cyberbullying, onde as raparigas se tornam alvos fáceis de perseguição, insultos ou humilhações sistemáticas em grupos de mensagens e redes sociais. O espaço virtual, que deveria ser de partilha e convívio, converte-se, assim, numa arena de ataques que perpetuam a ideia de que mulheres e raparigas são culpadas pelo insucesso ou frustração de certos homens.

A autora não fica pela constatação do problema. No último terço do livro, apresenta caminhos possíveis para a transformação. Fala, por exemplo, da necessidade de uma maior literacia digital, especialmente para adolescentes, ensinando-os a distinguir conteúdo de ódio e manipulador de uma comunicação saudável. Também defende o reforço de acompanhamento psicológico e programas de apoio à parentalidade, onde as famílias podem aprender a lidar com frustrações e a construir, com os jovens, uma relação menos conflituosa com o mundo. E destaca o papel das escolas na promoção de uma educação que valorize as emoções, o diálogo e a cooperação, em vez de reproduzir conceitos ultrapassados de “domínio masculino”.

O ponto forte de A Revolta do Homem Branco é precisamente a forma como Kaiser equilibra a clareza do relato jornalístico com a profundidade da investigação académica. Cada capítulo traz exemplos concretos — desde estatísticas sobre crimes de ódio até depoimentos de jovens que procuraram ajuda e encontraram conforto em comunidades online cada vez mais radicais. Esse contraste entre factos e histórias humanas confere ritmo e densidade ao texto, e permite ao leitor perceber que o movimento “incel” não é apenas “mais um grupo estranho da internet”, mas sim a manifestação de uma crise mais ampla na forma como muitos homens lidam com a sua própria identidade.

É um livro que nos confronta com as nossas próprias falhas coletivas: a falta de espaços de acolhimento emocional para rapazes inseguros, a existência de modelos nocivos de masculinidade que ainda dominam em vários contextos familiares e o impacto de discursos de ódio que, repetidos até à exaustão, acabam por “normalizar” a violência. A revolta que o título menciona não é apenas a de certos homens brancos contra as mulheres e o mundo; é também a revolta de uma sociedade que se deixou adormecer perante sinais alarmantes de violência de género, que se manifestam cada vez mais cedo.

A Revolta do Homem Branco é, portanto, um contributo essencial para quem quer compreender — e combater — a misoginia que se vai instalando em diferentes esferas, da internet ao convívio escolar. É uma chamada de atenção para a necessidade de revermos as bases em que assentamos a educação de rapazes e raparigas, as referências de masculinidade que promovemos e a urgência de criarmos redes de apoio sólidas para quem se sente à margem. A leitura funciona como um espelho que reflete uma crise que não é apenas dos outros, mas também a nossa, e exige uma mobilização colectiva para reduzir a violência e, sobretudo, oferecer aos jovens percursos mais saudáveis de afirmação pessoal.

 

Editora: Livros Zigurate

Ano: 2024

ISBN: 9789899216037

Número de páginas: 240

 

André Castro Soares

 

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