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Acerca de estigmas

estigmas gays

Esta semana decidi reflectir e escrever um pouco acerca de estigmas e slut-shaming dentro da comunidade gay masculina. (Isto com a quase-certeza de que é algo que também acontece dentro das outras letras do nosso arco-íris, mas como só tenho conhecimento do se passa na letra G, não vou extrapolar, mas deixo o convite aos leitores que fazem parte das outras letras a dar o seu contributo).

 

Para quem não conhece a expressão slut-shaming, é uma expressão anglo-saxónica para descrever a atitude de envergonhar ou humilhar alguém cuja vida sexual é vista por outra pessoa como sendo promíscua ou moralmente reprovável. Já devem estar a perceber porque é que eu decidi escrever acerca disto esta semana, certo? É que quantas vezes já não ouvimos alguém dizer “Fulano anda a foder meia Lisboa” ou “Sicrano tem mais rodagem que uma Gira” ou (…) (a coisa piora e acho que ninguém precisa que continue a enumerar as enormidades que conseguimos dizer uns aos outros).

Continuando com o tópico da vergonha, lanço a seguinte pergunta antes de continuar com a crónica:

O que é que envergonha mais a comunidade: adultos sexualmente activos e que têm relações sexuais consentidas com outros adultos sem prejuízo para nenhuma das partes (independentemente do número de parceiros); ou pessoas que se dirigem a membros da sua própria minoria com expressões altamente críticas e francamente ofensivas, num acto de condenar moralmente algo que não lhes diz respeito? 

Citando uma expressão de uma das minhas séries de televisão preferidas: Be careful, lest you suffer vertigo from the dizzying heights of your moral high ground, o que traduzido livremente seria algo como “Tem cuidado para não teres um ataque de vertigens do alto do teu planalto moralista”.

No fundo, é disto que se trata: de uma crença no suposto facto de que, por algum motivo, certos princípios morais são de alguma forma mais dignos e mais elevados do que os de outra pessoa e que isso torna quem adopta esses mesmos princípios num representante da comunidade mais digno que os restantes.

Desmontando isto, voltamos ao velho legado da homofobia internalizada, da visão patriarcal da sociedade e da masculinidade tóxica inerente ao catolicismo (ou outra religião) segundo o qual só o núcleo familiar “tradicional” e heteronormativo é que é válido e aceite, e também segundo o qual a mulher solteira com vários parceiros sexuais “é uma grande puta”. Dentro da nossa comunidade, adoptam-se os mesmos termos e a coisa fica ainda pior se o homem em questão preferir ser passivo no sexo anal. Isto porque tal como na comunidade hetero, o elemento insertivo é o garanhão, o marialva, etc. Não vale a pena alongar-me nisto porque todos sabemos que é verdade e já todos estamos (ou deveríamos estar) fartos de ouvir bottom-shaming em conversas de café, etc.

Todos somos expostos às convenções sociais da patriarquia enquanto crescemos, mas nada disto pode continuar a ter lugar na sociedade mais tolerante que acho que todos queremos construir. Questioná-las não é, de todo, impôr a não-monogamia ou o sexo casual a pessoas que preferem não viver dessa forma. No entanto, de uma maneira geral, a discriminação segue sempre o mesmo sentido: a pessoa monogâmica, “tradicional e de bons costumes” a julgar quem escolhe não viver dessa forma.

A racionalização desse julgamento, parte normalmente do argumento da saúde e das “doenças”, o que infelizmente é um fantasma da crise da SIDA que ainda nos assombra, apesar de todos os avanços na prevenção e tratamento do VIH e da democratização do acesso aos meios de diagnóstico das Infecções Sexualmente Transmissíveis. Todavia, quantas vezes ouvimos o discurso gasto de que quem tem muitos parceiros “anda carregado de doenças” (ênfase no último som da palavra: Ai, a outra tá cheia de doençassssssss)?

Mais recentemente, a democratização no acesso à Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), tornou aquilo que devia ser um momento de reforçar uma atitude positiva relativamente ao sexo e uma reconquista ao nosso direito a ter prazer sem medos e da forma que bem entendermos, em mais uma oportunidade para julgar e ofender as pessoas para quem a escolha de sexo seguro é a PrEP.

Tal como a maioria das atitudes discriminatórias, creio que a falta de conhecimento é o que está na base desta demonização da PrEP, juntamente com todas as ideias formadas durante a crise da SIDA acerca daquilo que é ou não sexo seguro, porque afinal a PrEP não protege contra as outras doenças, o que é verdade. No entanto, também é verdade que quem faz PrEP tem que fazer um rastreio trimestral às IST’s para continuar a ter acesso à medicação (conseguindo assim detectar e tratar rapidamente qualquer contratempo), e quem utiliza preservativos testa-se quando bem entender, tornando muitas vezes o diagnóstico mais tardio. É também verdade que qualquer prática sexual pode resultar em transmissão de sífilis, clamídia ou gonorreia, pelo que a utilização de preservativos durante o sexo anal não é um Golden ticket de acesso vitalício a uma saúde sexual imaculada. 

Penso que no rescaldo do Dia Mundial da SIDA é importante reflectir acerca disto e também do estigma imperdoável que ainda existe à volta dos membros da nossa comunidade que vivem com VIH. Mais uma vez um estigma vindo do medo e da falta de conhecimento. Falta fazer muito para interiorizar de vez na nossa Sociedade que os tratamentos que existem hoje em dia funcionam e reduzem a carga viral a níveis INDETECTÁVEIS e, consequentemente, INTRANSMISSÍVEIS.

Isto é ciência, não é ideologia e não está aberto a debate, mas necessita absolutamente de estar aberto a divulgação e de se tornar parte integrante da forma como encaramos a sexualidade no séc. XXI. Quando alguém apanha uma gripe ou uma pneumonia, ninguém diz a essa pessoa que ela é de alguma forma responsável por isso. No entanto, nem preciso de dizer como é que tanta gente dentro da nossa comunidade se dirige a alguém que apanha uma IST. Basta, aliás, consultar as notícias de há 6 meses atrás e ver a reacção ao surto de Monkeypox, que foi usado como arma de arremesso tanto dentro como fora da comunidade, para condenar a “promiscuidade” e estigmatizar.

Acho que conseguimos ser melhores do que isto e acho que temos obrigação de ser melhores do que isto.

 

R. J. Ripley

 

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