“Agora sinto-me livre, feliz e bem com o mundo à minha volta”
Conhecemos Andreo Gustavo através do projecto Queer em Lisboa quando este deu uma entrevista conjunta com a sua irmã gémea.
Andreo tem 26 anos, estudou Direito e licenciou-se em Ciências Forenses e Criminais. Posteriormente dedicou-se ao estudo de desenvolvimento pessoal, nomeadamente Coaching e Psicologia. É Life Coach certificado internacionalmente e ajuda os outros a descobrirem a sua verdade e a viverem de acordo com ela nas suas vidas. “Este é o melhor trabalho que eu poderia ter: ajudar os outros a serem mais felizes” declara ao dezanove.pt antes de confidenciar um segredo: “tenho neste momento um projeto prestes a ser lançado: um livro!”
Quisemos saber mais e dar visibilidade a um jovem trans que efectuou a sua transição do feminino para o masculino. Hoje Andreo sente-se bem e é uma fonte de energia e inspiração conforme vais poder ler:
dezanove: És um jovem trans F-M. Com que idade começaste a perceber que a tua verdadeira identidade não se encaixava com o teu aspecto físico e no teu BI? Como viveste essa altura?
Andreo: Desde criança sempre senti que era diferente, que havia algo que não encaixava bem em mim ou que era eu que não encaixava bem em lado nenhum. Mas com a adolescência e a necessidade social de pertença, tive de me adaptar e lidar com as minhas dúvidas em silêncio.
Comecei realmente a perceber o que se passava comigo quando tinha cerca de 18 anos. Aí foi mesmo a idade em que voltei a ter pensamentos antigos e viver como vivia era, sem dúvida, um martírio. Eu era uma pessoa revoltada com a vida (ainda que por fora não o mostrasse), tinha muita agressividade e raiva dentro de mim, e projectava isso nas pessoas que mais gostava. Não conseguia ter relacionamentos estáveis porque eu não gostava de mim. Foi aos 21 anos que após um relacionamento muito conturbado decidi pedir ajuda a um psicólogo que felizmente me encaminhou para os que considero serem os melhores médicos na área em questão.
Como foi a reação das pessoas a quem contaste a tua verdadeira identidade?
Quando contei à maior parte das pessoas, em quem confiava, o que se passava comigo e que não me sentia mulher e que queria mudar de género, inicialmente não compreenderam muito bem. Aceitaram mas não compreenderam. Felizmente que tive bons amigos e que a minha família sempre me apoiou mesmo não percebendo o que se passava comigo. Simplesmente queriam o melhor para mim e não aguentavam ver-me no estado infeliz em que eu andava.
Perdi algumas boas pessoas pelo caminho, aquelas que não conseguiram lidar com o facto de eu querer mesmo mudar de género, mas guardo-as no coração porque não têm culpa de não conseguirem lidar com isso. Não é ensinado nas escolas.
Tendo uma irmã gémea, como funcionou esta ligação de irmãos? Alguma vez ela imaginou o que sentias antes de lhe contares?
Andreo: A nossa ligação sempre foi muito forte. Também tivemos as idades em que não nos suportávamos mas no geral sempre amei a minha irmã e sei que é recíproco. Temos uma ligação genuína e momentos especiais exclusivamente nossos, isto é, momentos em que nos olhamos e nos compreendemos sem precisar de falar, momentos em que completamos as frases um do outro sem dizer ou simplesmente quando rimos à gargalhada por tudo e por nada.
No entanto, ter uma irmã foi para mim algo desafiante uma vez que eu raramente queria brincar às coisas que ela queria, então acabei muitas vezes por ceder, por deixar de lado as coisas que eu gostava. Na adolescência, seguia-a um pouco como modelo, ao fim ao cabo, queria fazer as coisas que ela também fazia quando sentia a necessidade de me integrar no grupo de colegas da escola.
Penso que ela sempre soube que havia algo em mim que não estava muito bem, mas não creio que pensasse que eu alguma vez iria mesmo querer mudar de género. Ou que fosse isso que se passasse comigo. Confidenciávamos algumas coisas mas nunca lhe disse exactamente o que sentia.
Anna: Imaginar o que o meu irmão sentia, não, penso que nunca imaginei realmente que ele sentia que não era ele próprio, julgo que nunca me passou pela cabeça que ele quisesse, ou se sentisse melhor sendo um rapaz. No entanto, a nossa ligação enquanto irmãos, e gémeos, sempre nos permitiu percepcionar alguns sentimentos, sensações, que aos outros passavam despercebidos. O que eu, desde sempre notei, foi que ele era diferente, diferente de mim, como qualquer outra pessoa. (não há duas pessoas iguais no mundo, nem mesmo os gémeos). As diferenças em que reparava, tinham que ver com o que ele queria vestir, a forma como brincava, que personagens "encarnava", e em tudo, o que o Andreo fazia/sentia, a sua energia era sempre mais masculina, mais "agressiva". Não que os homens sejam mais agressivos que as mulheres, mas a energia masculina é diferente da feminina. Pelo que, mesmo sem saber, ou ter noção, do que era ter um género, penso que sempre olhei para o meu irmão, e especialmente, quando eramos pequenos, como um rapaz, ou uma menina mais "rapazola ou desportiva".
Julgo que as crianças, quando são pequenas, não têm tanta noção do género. De tal forma que é na escola ou com os pais, que aprendem a diferenciar, e a dizer: O menino, a menina, o rapaz veste calças, a menina veste vestidos. E penso que tudo isto é uma coisa de "sociedade", uma coisa que não vem de todo, de dentro ou é inata. É aprendida e apreendida. Pelo que claro que fiquei surpresa, quando o meu irmão me contou o que pretendia fazer, ao ser acompanhado terapeuticamente no seu caminho. Fiquei preocupada com muitas questões, como qualquer pessoa. Mas é só um processo. Desde que ele seja feliz, para mim é tudo tão natural como a água. Ele deve ser quem ele achar que deve ser e o fizer feliz. Se sempre senti o que ele sentia? Não! Mas a essência dele sempre esteve lá. Sendo rapaz ou rapariga, ele é a mesma pessoa. Agora ainda mais feliz, por poder ser completamente quem sempre ele soube ser!
Conheces alguma situação de irmãos gémeos em que tenha havido uma situação semelhante?
De facto não conheço em Portugal nenhuma situação semelhante, mas é provável que exista. Se existir, seria interessante partilhar e trocar ideias.
A tua vida escolar ressentiu-se por causa da tua identidade de género? Foste alvo de algum tipo de bullying? Como ultrapassaste isso?
Na escola primária e ensino básico de 1º ciclo não senti que existia bullying, aliás, os rapazes até gostavam bastante de mim porque eu era aquela pessoa que jogava a bola, ao berlinde, passava mais tempo com os rapazes a brincar. Chamavam-me apenas maria-rapaz. Eu também nessa altura não percebia o que se passava comigo logo, alguns nomes não me afectavam. No ensino básico de 2º ciclo e secundária, aí sim, comecei a sentir que a diferença já fazia comichão a algumas pessoas e por esse motivo decidi inconscientemente não me vestir de forma masculina e tentar ao máximo encaixar-me nos grupos femininos que existiam. Por esse motivo nunca sofri muito bullying. Porém, não o considero como tal, considero-os mais como comentários desinformados, uma vez que não se ensina nas escolas a aceitar-se a diferença (seja ela qual for). Foi por volta dos 14 anos que começou a haver mesmo muita pressão por parte da vida social e tive de me adaptar para não me sentir excluído. No entanto, eu optei por fingir, por mentir, por me esconder e isso não foi bom. Por fora parecia feliz, mas por dentro não sentia nada. Senti-me como uma fraude perante os meus amigos e relacionamentos durante anos. Hoje em dia sei que isso não foi o melhor caminho porque me trouxe anos mais tarde muita coisa reprimida. Seja quem for, tenha ou não uma identidade de género que não corresponda ao seu género biológico, uma pessoa deve ser quem é, sem necessidade de mudar para se sentir aceite no grupo, mesmo que sofra bullying.
E a nível laboral como foi?
A nível laboral senti necessidade de esconder a minha verdadeira identidade, uma vez que quando me iniciei no mundo do trabalho, as mudanças ainda não eram notórias e, por medo de não ser aceite, coloquei o meu género biológico em acção para ser recrutado. Havia certos empregos que não me candidatava por já saber que muito possivelmente não me iria sentir bem ou não iria ser tão bem aceite quando contasse a verdade. No entanto, apenas dois meses após a faculdade, tive sucesso no recrutamento. Uns meses mais tarde quando decidiram subir-me de cargo, decidi contar a verdade pois não me sentia bem ao ter de esconder o que se passava comigo, até porque mais cedo ou mais tarde, as mudanças físicas iriam ser notórias. Tive colegas e patrões que considero excepcionais, sempre me apoiaram e aceitaram em tudo. Não foi por saberem que eu estava em transição de género que deixaram de me subir de cargo. Sinto uma enorme gratidão por isso.
Como te sentes agora?
Agora sinto-me livre, feliz e bem com o mundo à minha volta. Todo o processo, proporcionou-me um conhecimento de mim mesmo que considero brutalmente positivo. Considero que qualquer pessoa deveria conhecer-se a si para chegar a este estado de êxtase sobre si mesma. Agora sinto que sou eu, sinto que sou verdadeiro com os outros e comigo. Respeito-me e adoro a pessoa que sou hoje.
Que conselhos podes deixar a outros jovens na tua situação ou ainda com dúvidas?
Eu fui um caso bastante dúbio (os médicos nunca negaram), daí o meu processo ter levado quatro anos para iniciar tratamento hormonal e me ter sido dado um diagnóstico. Isto porque eu próprio tinha dúvidas. E as dúvidas não são más, elas foram a melhor coisa que me aconteceu. Caso contrário teria apressado um processo de reatribuição sexual (na mudança de genital), que neste momento não considero ainda um caso de vida ou morte, como considerei no primeiro ano de acompanhamento. Ter-me-ia certamente arrependido disso. Hoje tomo decisões com consciência e reflexão.
Em relação aos conselhos:
Primeiro procurem ajuda junto de equipas médicas competentes, uma vez que ainda que sintam que já sabem tudo sobre o que se passa com vocês (pelo que lêem ou vêem na net), considero que uma avaliação é necessária para que mais tarde não se arrependam de passos que podem ser decisivos e incontornáveis na vossa vida. Aprendam primeiro a conhecer-se a vocês mesmos, ainda que isso, leve algum tempo. Falem com as pessoas que vos são mais próximas e procurem grupos de apoio. Ainda que os vossos familiares e amigos não entendam o que se passa com vocês, e que até vocês mesmos não entendam, digam exactamente isso: 'Estou na descoberta interior do meu eu, na tentativa de perceber e aceitar quem sou e o que me faz realmente feliz e para isso, preciso disto. E só preciso que estejas do meu lado, mesmo que não me compreendas'.
E acima de tudo, que acreditem que é possível viverem a vida que sempre sentiram que devem viver. Acreditem que é possível serem felizes a serem verdadeiros com vocês (no masculino, feminino ou sem género definido) e com os outros e que vão encontrar formas de amarem e serem amados tal como são.
Que sugestões tens para que a situação em geral das pessoas trans em Portugal melhore?
Sinceramente ainda estou um pouco verde face às questões legais que existem em Portugal em relação à situação de pessoas trans, mas sei que a nível constitucional e laboral já houve bastantes progressos.
Pelo que sou informado (através do grupo de apoio a pessoas trans), existe uma falta de cuidados de saúde inadmissível em Portugal. Segundo consta, o Governo Português deveria por lei pagar ou comparticipar as cirurgias de reatribuição sexual, coisa que me arrisco a dizer, não se verificar. Em Portugal, a maior parte de nós, para ter um tratamento cirúrgico de qualidade e que não ponha em causa a integridade física e psíquica do paciente, só é bem conseguida no privado. Uma vez que através do SNS, e falo apenas na parte de reatribuição sexual (reconstrução genital), existe uma equipa de Coimbra que supostamente estará a fazer cirurgias, mas não antes de voltar a fazer novas avaliações desnecessárias aos pacientes que podem demorar anos. Segundo também referem, utilizam métodos ortodoxos que comprometem seriamente a vida normal dos pacientes. Ora face a estas situações faladas, qualquer pessoa tem receio de se “candidatar às mãos dessas equipas” preferindo obviamente o privado e levando ao desespero de muitos.
Primeiramente sugiro que se investigue seriamente estes casos e que o SNS dê realmente uma resposta adequada a cada caso. Pois não acho justo que após anos de avaliação e diagnósticos dados, ainda se tenha de fazer novos diagnósticos para se poder ser operado. Além de que, existem em Portugal, pessoas que operam de bom grado (no privado), pessoas como nós, que apenas querem sentir-se completos e com o órgão sexual que sempre sentiram que deveriam ter.
Depois sugiro que deveria ser feito um investimento na formação médica que contenha as técnicas mais avançadas que existem em termos de reatribuição sexual (genital) a equipas de cirurgia que possam, no público, realizar tais cirurgias.
Os responsáveis pelo SNS deveriam fazer rapidamente alguma coisa para evitar suicídios e para evitar que as pessoas desesperem ou tenham de recorrer ao privado (quando não têm meios para tal), aquando da cirurgia de reatribuição sexual. Que a espera para tais cirurgias não seja superior a 6 meses, nem tenha de haver novas avaliações por parte de novas equipas para que isso aconteça.
Apelo a uma maior troca de informação de casos entre os médicos, para uma maior partilha de conhecimentos.
Por último, sugiro ainda que a nível de acompanhamento psicológico sejam introduzidas ou sugeridas pelas equipas, ferramentas de desenvolvimento pessoal, como o Coaching, para ajudar as pessoas a concretizarem os seus objectivos ou desenvolverem todo o seu potencial.
Entrevista de Paulo Monteiro