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Alpha 

 

M. tinha dificuldade em acreditar que a sua cabeça estava pousada no peito daquele homem. Fora tudo tão rápido. Um dia arriscou uma mensagem no Grindr, sem esperar resposta. Ela veio mas era ambígua. Ficaram de ver.

 

M. persistiu, mostrando-se disponível, registando tudo o que ele lhe dizia. Ele confessou-lhe algo que o deixara chateado nesse dia: um amigo que não comparecera ao jantar que tinham combinado. M. confortou-o e,  como agradecimento, recebeu o seu nome. Depois de mais algumas mensagens trocadas, possuía já uma breve biografia sua, quatro fotos, uma das quais sem roupa (cobriu a oferta na mesma medida, mesmo sentindo-se pouco à vontade com o seu corpo nu) e o Instagram. Percorreu toda a galeria de fotos, própria de um catálogo de roupa interior, e viu que cada imagem atraía milhares de likes. M. não se considerava feio mas reconhecia haver ali um desequilíbrio. Tentou combater a intimidação com as suas melhores palavras, mantendo a conversa viva e o interesse aceso.

A certa altura, M. descobriu algo novo. As mensagens que recebia dele eram quase sempre sexuais, mas as entrelinhas iam revelando mais necessidade de afecto do que desejo de cama. Pouco depois, tudo se precipitou. Na primeira noite em que estiveram juntos, ele pediu a M. que o beijasse demoradamente enquanto o penetrava. Disse-lhe que sim, que o beijaria o tempo todo. M. compreendeu então que a raiz da sua atracção por si não era física, por um corpo que empalidecia face ao seu, mas presa à promessa de romance que M., sem se aperceber, lhe tinha soprado. Exaustos na cama, ele apertou M. contra si, de olhos nos seus, e disse-lhe que se sentia bem assim. Na semana seguinte, repetiram o encontro. No final, ele pegou-lhe nas mãos, fechou-as nas suas e disse-lhe que se estava a apaixonar. Como não encontrava palavras, M. aconchegou-se no peito largo e encostou os nós dos seus dedos à boca. M. sentia-lhe as pulsações, as suas mãos ásperas tremiam no toque dos lábios. Decidira que aquela seria a última vez que estavam juntos.

As mensagens que recebia dele repousavam em longos silêncios. Ao fim de alguns dias, o tempo suficiente, M. escrevia-lhe mas arrancava todas palavras que lhe pareciam meigas. Não era frio, apenas vago, o que resultava em frases ainda mais cruéis. Esperava que ele entendesse a vontade de afastamento e que fosse perdendo o interesse. Parecia estar a ter efeito. A qualquer novo convite, M. desculpava-se com o trabalho. Ele dizia que percebia, que ficava para depois, tentando esconder o desapontamento. No escritório, em breves instantes que M. reservava para respirar do trabalho, por vezes parava no seu instagram, relembrando o corpo e o prazer que já tinham sido seus. Noutros dias, percorreria o Grindr à procura de um novo engate. O perfil dele lá estava, ainda nos favoritos, online muitas vezes, esperando uma nova mensagem sua, talvez.

M. arrumou as suas coisas depois de um longo dia no escritório. Quando saiu em direcção ao metro, abriu o Grindr e reparou que o perfil dele se encontrava próximo. O caminho mais rápido para aceder à estação era através de um velho centro comercial em avançado estado de decadência, o Alpha Mall. (M. divertia-se a pensar se quem inventara o nome o fizera com consciência do jogo de palavras). No longo corredor do Alpha, o chão de borracha abafava os passos e o brilho das lâmpadas incandescentes suprimia a cor das faces. Apenas sobreviviam um café e algumas lojas de tralha em segunda mão. Ao fundo, junto à porta de acesso ao metro, algumas mesas alinhavam-se à parede de vidro da cafetaria. Um funcionário arrumava as chávenas no topo da máquina. Preparava-se para fechar. Já não havia clientes, excepto aquele que, sentado numa das mesas do corredor, sorria nervosamente para M.

M. permaneceu de pé à sua frente. Ele foi o primeiro a falar. Estava por ali em trabalho e pensara em fazer-lhe uma surpresa. Depois calou-se um segundo, com os olhos baixos. Lembrava-se dele à noite, disse. Quis saber se podiam voltar a estar juntos. Perguntou-lhe se queria jantar consigo. M. olhava-o e não conseguia deixar de admirar a beleza daquele homem, mesmo naquele momento em que, era evidente, sofria por sua causa. Tinha de ir embora. Pôs-lhe a mão na nuca. Ele ouviu-o sem desviar o olhar da superfície da mesa. M. acariciou-lhe a pele atrás do pescoço e disse-lhe que teria de ficar para outro dia. Despediu-se e saiu em direcção ao metro.

*

Ele nem sequer se tinha sentado.  T. voltou-se e ainda o viu, através da porta de vidro do Alpha, a descer as escadas para o metro. Quisera apenas voltar a encontrar-se com ele. Era incapaz de devolver todas as coisas bonitas que ele lhe tinha dito mas provaria as suas intenções de outra forma. Convidá-lo-ia para jantar. Queria animá-lo, afastá-lo das preocupações do trabalho. Voltar a abraçá-lo na cama, tê-lo consigo uma noite mais. Queria que soubesse que não o conseguia esquecer. Mas ele nem se deteve. De pé, foi tão sedutor como sempre, mas agora as palavras que dirigia a T. feriam-no. Não podia dar-lhe o que pretendia, disse. Tinham tido bons momentos, é certo, mas irrepetíveis. Devastado com o que ouvia, T. ainda sugeriu que ao jantar conversassem melhor. Ele pousou a mão no seu pescoço e disse-lhe que não podia ficar. Tinha quem o esperasse em casa, disse por fim. T. percebia agora, e não disse mais nada. Sentiu a mão descolar-se do pescoço como se lhe arrancasse a pele. Quando a porta se abriu, o frio da noite veio preencher a forma dessa mão fantasma.

 

Sirius

 

 Este texto é ficção e pertence ao projecto Voz Arco-Íris. 

 

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