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Amazing Grace

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Lembro-me da notícia da morte da Gisberta e de como todos aprendemos. Lembro-me da vigília, poucos dias depois, naquele edifício inacabado.

Gente, tristeza, revolta, velas. Entre algumas amigas da Gisberta, o Fernando, o António, a Catarina e outros começaram a murmurar o Amazing Grace, primeiro baixinho, depois a ressoar e a ocupar aquele lugar inóspito. Arrepiados todos, acompanhávamos como podíamos. Era como se, pelas piores razões, o Porto fosse Laramie. Alguns meses antes, na Academia Contemporânea do Espectáculo, a peça de Moises Kaufman, teatro-reportagem sobre o crime de ódio homofóbico que vitimou Matthew Sheppard, tinha estado em cena. Agora, não estávamos em Wyoming, mas o ódio estava mesmo ali, à frente do nosso nariz, na nossa cidade, exposto num crime que ainda estávamos a aprender a nomear. Da comunhão da indignação fizemos um ritual de luta.

A imprensa hesitava no nome da vítima e no seu género. O Jornal de Notícias insistia nos relatos sobre “o travesti assassinado”, mesmo que repetíssemos que a pessoa tinha nome, Gisberta, e que se dizia no feminino. Algumas associações hesitavam em utilizar uma palavra que, para muitos, era nova: transfobia. Nós, os que ali fomos dar por várias razões, procurávamos resistir à explicação fácil centrada na desumanidade dos jovens autores do crime. Sim, havia uma responsabilidade individual pelas crueldades que tinham sido feitas, mas o caso era mais denso: era toda a cultura de discriminação das instituições e da sociedade que acusávamos. Não bastava pois que se julgassem os culpados para aliviar o remorso. Era preciso que se apurasse mais, que se entendesse o que se passara como a expressão de um horror mais fundo, mais quotidiano e mais generalizado. Ou seja, mais brutal justamente porque mais banal.

Em Fevereiro de 2006 estávamos a dar os primeiros passos, tímidos, no reconhecimento de uma realidade invisibilizada. Fazíamo-lo pelas razões mais trágicas. Mas foi desse acontecimento e das solidariedades que ele teceu que nasceu a marcha do orgulho LGBT no Porto, a primeira a fazer sair a bandeira arco-íris às ruas da nossa cidade. Teve lugar no Verão desse mesmo ano de 2006, com a violência e o “t” como tema. Até hoje, a marcha que então nasceu nunca mais deixou de realizar-se. Sabíamos por que razão a iniciávamos: não podíamos ficar-nos pela homenagem aos mortos. Era preciso, acima de tudo, cuidar dos vivos.

Por um acaso ditado pela rotatividade dos mandatos que à época era possível fazer, encontrei-me dois anos depois, e pelo período de seis meses, na Assembleia da República. Uma das primeiras coisas que, em conjunto com vários e várias activistas, decidimos fazer foi uma audição pública com pessoas transexuais, no mesmo dia 22 de Fevereiro. Pela primeira vez, os e as trans entravam de cara levantada no Parlamento para falar das suas vidas e de sua justiça. Corria o ano de 2008 e sentíamos como se dava, a cada momento, um passo novo. Teríamos de esperar três anos, muito sofrimento e mais algumas mortes, até existir a primeira lei capaz de reconhecer a identidade de género. Com ela, estávamos a fazer caminho na direcção certa e dávamos um pequeno passo de gigante, pondo fim a processos judiciais morosos e humilhantes e a mecanismos de alteração de documentos de identificação que estavam dependentes de operações cirúrgicas e da decisão de um juiz.

Foi preciso criar visibilidade, organizar colectivos com voz própria, formas de apoio e de acção. E esta batalha está ainda, em grande medida, por fazer. Hoje, como ontem, é preciso mudar mentalidades mas também a lei e as políticas públicas. Acabar com a patologização das identidades trans que permanece no nosso enquadramento legal, eliminar a tutela médica que menoriza as pessoas, garantir a sua autonomia e autodeterminação, desenvolver respostas contra a discriminação no acesso ao emprego, à saúde, à educação, aos bens e serviços públicos. E, claro, combater a violência e os crimes de ódio. São 271 as pessoas trangénero assassinadas só este ano, um pouco por todo o mundo. É quase uma Gisberta por dia.

Quando hoje penso na nossa Gisberta, é nisso que penso. Que o futuro é o tempo que é preciso fazer. Que este percurso continuará a percorrer-se com autonomia e alianças, afirmação e solidariedade, identidades múltiplas e direitos universais. Para mim, como para muitos outros e outras, ele começou em Fevereiro de 2006. E isso, Gisberta, não esqueceremos nunca.

 

 

José Soeiro

Sociólogo, activista LGBT e deputado