Andamos a apagar o fogo do ódio com conta-gotas
No meio da loucura da minha adolescência, passava os dias deslumbrada com o imaginar do momento de independência. Imaginava todos os cenários em que viveria livre a minha orientação, as minhas relações e a minha sexualidade.
Vocês sabem como é que é, certo? Somos jovens e achamos que todas as restrições que impedem que nos possamos sentir em pleno são arquitectadas pelas pessoas adultas que tomam conta de nós. Dizia para mim: um dia vai deixar de ser assim. Entretanto cresci. Já não estou a viver a loucura hormonal ou o capítulo da minha vida em que achava que tudo se resolveria por simplesmente crescer. Já sou crescida, já não há desculpas.
O pensamento crítico de pessoa adulta que se desenvolveu com estudos, mas sobretudo com experiência, sabe perfeitamente bem que idade nenhuma será meta para que possa experienciar a minha vida na sua plenitude. Como é que vivemos em pleno se as nossas pessoas são corpos no chão, são falta de ar, são lábios abertos, são roupa rasgada e são campas, muitas campas?
Como é que vivemos em pleno se as nossas pessoas são corpos no chão, são falta de ar, são lábios abertos, são roupa rasgada e são campas, muitas campas?
Atrevo-me a dizer que no meio do ódio, fiz casa no amor. Tenho um lugar seguro, o meu lugar, a minha casa. Também sei, no entanto, que experienciar a vida não é a confundir com o conforto dentro de quatro paredes, é preciso mais, precisamos de mais. O mundo lá fora também é casa e como qualquer pessoa dentro de caixas padrão precisa de ir ao supermercado, também nós precisamos. Como qualquer pessoa dentro de caixas padrão se passeia de mão dada a quem ama, também nós o queremos fazer. Experienciar a vida é vivê-la num todo, consciente de que vão existir melhores e piores momentos, altos e baixos como na vida de qualquer outra pessoa, mas sem que estes sejam condicionados pela nossa identidade, pela nossa expressão e/ou pela nossa orientação.
Tenho esta particularidade de romantizar a dor, trocando a raiva por palavras bonitas na esperança de que sejam semente no vaso de alguém que não acredita na liberdade. Acho sempre que lá chegaremos com mais amor, com mais calma, com mais paciência e com mais uma inspiração profunda. Em vez de pegar fogo ao que escrevo, deito-lhe mais um copo de água, com o medo inevitável de ser eu a próxima estendida no chão se não educar mais pessoas e achando que não as conseguirei educar aos gritos, mas talvez só assim. Será que só assim?
Todos os momentos políticos como marchas e protestos, são para mim poesia e representam as pessoas ainda não se terem efectivamente cansado – mas eu sei que sim, sei que o cansaço já chegou e que andamos aqui de um lado para o outro a apagar fogos imensos com conta-gotas. Ora resulta, ora nos queimamos.
No meio da loucura da minha adolescência, passava os dias deslumbrada pelo momento de independência. Tornei-me efectivamente independente em muitas coisas, mas nunca ganhei independência do ódio que veste as pessoas. Vocês sabem como é que é, certo? Somos adultos e sabemos que todas as restrições que impedem que nos possamos sentir em pleno são arquitectadas pelas pessoas adultas que tomam e tomaram conta de nós – os governos, os padrões e as caras que têm visibilidade.
Continuo dependente do que cada pessoa pensará quando me vir a dar a mão a outra mulher. Continuamos dependentes do que cada pessoa decide fazer quando vê barba e batom na mesma pessoa ou quando acha que os comportamentos não são masculinos o suficiente, femininos o suficiente, brancos o suficiente, padrão o suficiente.
Ter crescido só me trouxe a certeza de que não sou suficiente aos olhos de um todo e enquanto esta frase poderia levar a algo motivacional que me fizesse concluir com: mas temos que aceitar que nem todas as pessoas vão gostar de nós – esta frase, ter crescido só me trouxe a certeza de que não sou suficiente aos olhos de um todo só me leva a concluir que essa certeza serve também como estado alerta, como declínio da saúde mental das pessoas queer, serve como preparação – quem morrerá a seguir?
Marta Guerreiro, escritora