Ângelo Fernandes: “É preciso que haja homens que se apresentem como feministas”
Surgida no início do ano, a associação Quebrar o Silêncio veio preencher uma lacuna no apoio a homens vítimas de violência e abuso sexual em Portugal. Entre o apoio que prestam de forma online e presencial surge agora um encontro dirigido ao grande público dias 16 e 17 de Novembro no ISCTE, em Lisboa. “O homem promotor da igualdade” pretende desafiar a masculinidade tradicional e envolver o homem na luta pelos direitos das mulheres. “O que nós propomos é uma reflexão sobre como podemos motivar mais a participação do homem para a igualdade de género” comenta Ângelo Fernandes, da direcção executiva da Quebrar o Silêncio. Um tema obrigatório nos dias que correm e para melhor compreender na entrevista que se segue.
dezanove: Como surgiu a ideia para o encontro “O homem promotor da igualdade”?
Ângelo Fernandes / Quebrar o Silêncio: A ideia do encontro surgiu após uma reflexão sobre os vários obstáculos que os homens sobreviventes enfrentam quando procuram apoio. Além das consequências directas do abuso, a sociedade continua a esperar que um homem não chore ou que não possa ser vítima. E precisamos de transformar estes valores e ideais que prejudicam a qualidade de vida de muitos homens e mulheres. Após esta reflexão, pareceu-nos obrigatório discutir os papéis tradicionais da masculinidade e de que forma podemos contribuir para novas formas e modelos para a igualdade de género.
Podes destacar alguns dos oradores e oradoras presentes e os temas abordados desta iniciativa? [Programa aqui: https://www.promotoresdaigualdade.pt/]
Destacar algumas reflexões é uma tarefa difícil. Todas as pessoas convidadas são importantes, pelo que não parece correcto destacar um nome em detrimento de outro. Creio que temos um programa variado e com contribuições muito específicas e pertinentes. Quisemos trazer pessoas de diferentes áreas e contextos, com intervenções distintas para enriquecer o encontro. No fundo, projectámos fazer uma viagem durante os dois dias. No primeiro, o foco é mais centrado na criança, abordando as dimensões da socialização, escola e cidadania. No segundo dia, o foco é mais diversificado e passa pelas várias dimensões do homem adulto, como por exemplo, ser promotor da igualdade de género ou vítima de violência doméstica ou abuso sexual.
Além das consequências directas do abuso, a sociedade continua a esperar que um homem não chore ou que não possa ser vítima. E precisamos de transformar estes valores e ideais que prejudicam a qualidade de vida de muitos homens e mulheres.
De que modo é que este evento está enquadrado na actividade da Quebrar o Silêncio, uma associação que apoia homens vítimas de abuso sexual?
Para quem não esteja por dentro desta área, a ligação pode parecer ténue, mas estas matérias estão relacionadas. Quando informamos as pessoas que um homem sobrevivente demora, em média, 26 anos até procurar apoio, a reacção é de surpresa. As pessoas não têm ideia que o silêncio destes homens é tão prolongado e também não sabem que 1 em cada 6 homens é vítima de violência e abuso sexual antes dos 18 anos. Para quem está desinformado são dados surpreendentes.
O nosso apoio é especializado aos homens sobreviventes. Além das consequências directas do abuso, os valores tradicionais da masculinidade afectam também o acesso ao apoio e o próprio processo de recuperação. Estes mitos e crenças que todos e todas nós temos precisam de ser desconstruídos. Nas nossas sessões de sensibilização percebemos que estas ideias continuam a ser passadas às crianças. Há uns dias, uma jovem disse-me: “Nós acreditamos que os homens podem chorar, mas a sociedade impõe-se e diz-lhes que eles não podem chorar”. Este é um dos aspectos que abordamos, mas há outros. A própria ideia de que um homem não pode ser vítima de abuso sexual ou, se for, já não é homem, é um obstáculo com um grande peso que dificulta a procura de apoio e o próprio processo de recuperação.
Desconstruir estas ideias e reflectir sobre novos valores de masculinidade é uma forma de contribuirmos para desconstruir os papéis tradicionais e assim tentar diminuir a média de 26 anos que estes homens passam em silêncio.
Quando informamos as pessoas que um homem sobrevivente demora, em média, 26 anos até procurar apoio, a reacção é de surpresa. As pessoas não têm ideia que o silêncio destes homens é tão prolongado e também não sabem que 1 em cada 6 homens é vítima de violência e abuso sexual antes dos 18 anos.
Com os últimos casos de abuso sexual vindos a lume, consideras que o público em geral ficou esclarecido sobre o que constitui um abuso sexual ou, por outro lado, pessoas como Kevin Spacey e outras figuras públicas - inclusive portuguesas - só contribuíram para confundir e propagar preconceitos?
Os casos mediáticos podem ajudar a compreender que a violência e abuso sexual é um problema grave e que precisa de ser combatido. No entanto, também é preciso que estes casos sejam orientados e trabalhados de modo a representarem um exemplo positivo de informação, sensibilização e, muito importante, de empoderamento das vítimas. Infelizmente não é isso que se constata. Continuamos a observar uma cultura de desacreditação das vítimas, de culpabilização e responsabilização das mesmas. Observamos figuras públicas que estão desinformadas, mas que não deixam de projectar as suas ideias preconceituosas e repletas de estereótipos sobre estes temas.
Se quando uma vítima partilha a sua história de abuso é atacada e as reacções à sua partilha são de descrença, o que estamos a dizer às vítimas que continuam em silêncio? Enquanto sociedade estamos a vincar que ninguém vai acreditar nelas e, assim, a contribuir para o seu silêncio.
A responsabilização das vítimas e a consequente culpabilização das mesmas é uma das razões pelas quais os homens demoram cerca de 26 anos a procurar apoio. É fundamental acreditar nas e nos sobreviventes, compreender o seu silêncio e valorizar a coragem e a força necessárias para partilhar a sua história. À medida que as crianças crescem vai diminuindo a probabilidade de partilharem com alguém a história de abuso. Uma da razões para tal acontecer é o receio de serem desacreditadas.
Se quando uma vítima partilha a sua história de abuso é atacada e as reacções à sua partilha são de descrença, o que estamos a dizer às vítimas que continuam em silêncio? Enquanto sociedade estamos a vincar que ninguém vai acreditar nelas e, assim, a contribuir para o seu silêncio.
Este é um encontro sobre igualdade de género, mas ao contrário do que se poderia pensar o foco passa pelo homem. Podes explicar-nos um pouco esta decisão?
A conquista pela igualdade de género tem de ser feita com a participação de todas as partes, e o homem é parte integrante deste processo. O que nós propomos é uma reflexão sobre como podemos motivar mais a participação do homem para a igualdade de género. O tema pareceu-nos obrigatório, uma vez que estas questões sociais beneficiam mulheres e homens.
O que podem esperar as pessoas que vão participar?
Espero que as pessoas possam ter acesso a uma reflexão colectiva sobre as diferentes matérias abordadas e a um espaço de debate. Não pretendemos que seja um espaço expositivo e unilateral. Queremos que haja um diálogo e que o público seja parte activa do encontro e, deste modo, possa enriquecer as reflexões.
Ainda há vagas?
Temos a lotação esgotada, mas continuamos a pedir às pessoas que se inscrevam porque há sempre desistências e queremos acomodar o maior número possível de pessoas interessadas. É o que estamos a fazer neste momento, a pedir que nos confirmem as inscrições ou que comuniquem as desistências. Esta semana já conseguimos acomodar várias das pessoas que estavam em lista de espera.
Trata-se de um encontro de reflexão sobre novas formas de masculinidade para a promoção do envolvimento do homem nos direitos das mulheres e igualdade de género. Mas como passar da reflexão para a prática quando assistimos diariamente, seja ao vivo, seja nas redes sociais, a tantos atropelos na igualdade?
Esse é um dos desafios deste encontro: reflectir não só sobre as diferentes temáticas, mas também sobre formas de participação na prática. Há diferentes formas e posturas. Por exemplo, há quem opte por não interagir com quem tenha discursos de ódio nas redes sociais, mas há quem escolha intervir. São duas posições distintas e queremos também reflectir um pouco sobre a passagem da teoria para a prática.
No Portugal de 2017 os homens ainda têm medo de dizer que são feministas?
Em Portugal, o feminismo parece ter uma conotação negativa. Há uns tempos disseram-me que era “uma feminista ressabiada” e não foi de todo um elogio. Parece que há a ideia de que as feministas são "as chatas que não se calam, que estão sempre com aquelas coisas”. Termos homens feministas que se assumem como tal pode ser uma pequena forma de ajudar a subverter estas reacções quase irrefletidas. Claro que há vozes misóginas que, de forma desonesta tentam destruir as lutas feministas, achando que podem priorizar as verdadeiras questões sociais, mas mesmo para essas vozes é importante ter homens feministas que “batem o pé” e dizem “eu não concordo com isso, sou homem e não concordo com a misoginia”.
Não sei se medo não será uma palavra muito forte, mas pode haver um certo receio. No entanto, é preciso que haja homens que se apresentem como tal para começar a tornar-se comum. Para que seja cada vez mais acessível esta ideia de que todas e todos nós temos de contribuir para a igualdade de género.
Termos homens feministas que se assumem como tal pode ser uma pequena forma de ajudar a subverter estas reacções quase irrefletidas. Claro que há vozes misóginas que, de forma desonesta tentam destruir as lutas feministas, achando que podem priorizar as verdadeiras questões sociais, mas mesmo para essas vozes é importante ter homens feministas que “batem o pé” e dizem “eu não concordo com isso, sou homem e não concordo com a misoginia”.
Programa do encontro “O Homem Promotor da Igualdade“ aqui: https://www.promotoresdaigualdade.pt
Segue e apoia a Quebrar o Silêncio aqui: https://quebrarosilencio.pt/