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As sete vidas de Elza Soares, a deusa-mulher

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Um concerto histórico, como só estórias sabe fazer e cantar. Elza Soares levantou o Capitólio com a sua voz e o seu canto.  Pelas mulheres, todas as mulheres “dentro de nós”. A apresentação do álbum “Deus é mulher” contou ainda com a recuperação de muitos temas do álbum “Mulher do fim do mundo”. A força de uma voz de Elza veio com com um desejo final “me deixem cantar, até ao fim”. Antes do concerto, o dezanove falou com Waquilla, Lila Fadista, Raquel Freire, Catia Azevedo e Paula Cardoso.

 

O encontro estava marcado. Depois da SIC era a vez de o dezanove entrevistar a grande a magistral Elza Soares. Sentada e vestida com a camisola da selecção canarinha a cantora falou da forma como sempre combateu o preconceito. No início da carreira, lá na década de 40 do século passado,  já se fazia contra os preconceitos e contra a homofobia. “Eu estava num lugar de Minas Gerais, Belo Horizonte, na janela com o meu filho e vi um grupo brigando na rua, batendo na rua. E eu da sacada da janela pude ver que era um gay que estava apanhando. Eu desci correndo fui lá no meu do grupo e disse: ‘Deixa que ele é meu maquilhador e cabeleireiro, solta, vamos embora’. Ele não entendeu nada, estava muito assustado né. Estava todo machucado e eu pude salvá-lo desse absurdo”, conta Elza Soares. Por estas situações e também pelo seu canto, Elza foi conquistando o público LGBTQI: “Ai meus Deus, eu vou respirar profundo agora! Quando comecei a cantar eu tive esse público do meu lado, o público gay do meu lado, entendeu. Ganhei esse público maravilhosamente bem. Foi meu público, foi meu guia foi tudo meu”. 

Um público cada vez mais abrangente. Os grupos de pessoas historicamente oprimidos, mulheres, negros e negras, pobres e pessoas LGBTQI foram tendo nas canções dos últimos discos de Elza uma inspiração. “Penso nesse grupo. Lógico que penso nesse grupo. Eu tive na minha vida a grande Valéria!” Elza pede ao seu assistente Júlio para se recordar das amigas trans e também transformistas com quem foi trilhando caminho contra o absurdo da violência transfóbica. E continua: “Me dá aí o nome das meninas Jú!... A Valéria Houston, as Bahías e a Cozinha Mineira, aquela que ficou doente e que morreu. A mais forte de todas: a Rogéria!”. O olhar poderoso e com sete vidas de Elza Soares é parte da história da humanidade. O seu lugar de fala “é o meu país” como canta na música “O que se cala” com que abriu o concerto no teatro Capitólio em gritos. A artista confessou ao dezanove que pensa no grupo de pessoas LGBTQI quando compõe as suas músicas e se o álbum “Mulher do Fim do Mundo” era um desabafo íntimo. “Deus é mulher” é um manifesto para a luta dos próximos anos. Um manifesto numa luta liderada pelas mulheres. 

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Antes do concerto o dezanove cruzou-se com algumas das pessoas que, com um brilhozinho nos olhos, aguardavam Elza Soares. A primeira foi a cantora afrotravesti brasileira Waquilla. “A Elza é a mulher do fim do mundo e a gente vive num momento muito necessário de uma presença de uma mulher negra em cima de um palco”, refere a artivista que se posicionou na frente do palco. Waquilla refere a importância da inspiração de Elza para os grupos historicamente subalternizados, hoje a ganharem lugar de fala: “Quando temos uma referência negra como a Elza Soares a gente se sente mais bonita, mais capaz e quando vemos uma de nós no topo como ela chegou eu acho que é uma força e um trampolim que ganhamos para outros voos”. 

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A activista e cantora Lila Fadista do Fado Bicha também veio ao Capitólio ver Elza Soares, figura marcante na vida e carreira do cantor. “Tenho uma relação enquanto ouvinte, fã e pessoa que se sente muito inspirada pela energia dela, pelo rasganço dela. O que ela faz através da música, pelas coisas que aborda pelos pontos sensíveis onde toca e pela energia que ela transporta de empoderamento da mulher negra de uma maneira bem abrangente”, destaca a cantora. Na conversa com o dezanove foi também tempo de falar da versão da música mulher do fim do mundo do Fado Bicha. “A nossa versão da ‘Mulher do fim do mundo’ é primeiro de tudo uma homenagem a ela, à sua história e sua luta. Complexificamos com uma abordagem ao racismo e ao colonialismo e como as pessoas crescem em Portugal e se relacionam com esses temas e com a história colonial que acaba por estar tudo relacionado. Um longo calvário das pessoas negras africanas que foram retiradas à força de África e escravizadas, enfim é uma ferida que não sara em um século nem dois e que se vivo no pós-colonialismo, que de alguma forma nem sequer é pós”, afirma Lila Fadista. 

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O mesmo é reforçado pela cineasta e ativista LGBTQI e anti-racista Raquel Freire que destaca a importância de Elza Soares para o feminismo militante. “Foi uma mulher que sobreviveu à violência doméstica, que a denunciou, portanto na sua vida quotidiana ela ensinou-nos que não se é só feminista ou não se é só anti-racista, é uma prática é no dia-a-dia”. A realizadora que tem na Elza Soares um guia para o comprometimento político e artístico referiu ainda que “a Elza dá-nos uma lição de vida de que a luta é canção de que a canção de resistência, de que a resistência se faz através da música e da arte e através do seu próprio exemplo de vida”. 

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Cátia Azevedo, de Lisboa, também foi ao concerto a convite do percussionista de Elza Soares, Dalua, importante na composição sonora dos álbuns da sambista histórica do Brasil. “A música dela tem bastante impacto e cada vez mais esse poder da mulher na sociedade, cada vez mais numa posição bastante mais afirmativa. Certas mulheres que possam estar um pouco mais apagadas ao ouvirem a música dela que sintam e abram os seus horizontes”, referiu. 

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Pela primeira vez num concerto da cantora estava Paula Cardoso: "Eu nunca vi a Elza ao vivo, a Elza já está com alguns anos, se não viesse a este concerto, provavelmente não voltarei a ter uma oportunidade de vê-la ao vivo e não queria deixar passar essa oportunidade”. Para Paula Cardoso, a interseccionalidade no feminismo da obra e vida da cantora é um manifesto para uma sociedade mais justa e igual. “Tem que ser esse o caminho. Historicamente o feminismo começou por excluir uma série de mulheres e continua a haver uma visão dominante que é a da mulher branca, heterosexual, classe média e aparecerem outro tipo de vozes é importante. Em Portugal por exemplo já temos o Instituto da Mulher Negra (IMUNE) e a Femafro e todas essas vozes são importantes, para combater as múltiplas discriminações que sofremos”, sublinha.  

Subiu o pano no Capitólio e a deusa Elza Soares surge na sua poltrona de luta com o ceptro na mão. Tem esse trono por direito, conquistou-o contra todas as adversidades. Ali com as mulheres de todos os mundos. No final do concerto gritou “me deixem cantar até ao fim”, o público respondeu e como respondeu. 

Obrigado Elza. Nós também amamos você. Te cantaremos até ao fim. 

Mais vídeos aqui.

 

Texto: André Soares 

Fotografia: Noé João