Assinala-se hoje o Dia da Visibilidade Trans
“No creo en la violencia de género, creo que el género mismo es la violencia, que las normas de masculinidad y feminidad, tal y como las conocemos, producen violencia.” - Paul B. Preciado
Transexualidade, Transgénero e Trans são termos recorrentes para expressar a variedade de vivências de género que não correspondem ao género atribuído à nascença ou ao binário masculino/feminino. Identidades trans podem ser binárias ou não binárias, podem escolher fazer a transição de género socialmente, legalmente e/ou medicamente, ou não, sem com isto invalidar a identidade da pessoa.
A transexualidade remete, historicamente, a uma perspectiva psico-médica patologizante da identidade de género, como uma doença a ser tratada. Até há pouco tempo, a Classificação Internacional de Doenças Mentais (CID-11), colocava a transexualidade, “transtorno de identidade de género”, como uma doença mental, tendo sido apenas em 2018, vinte e dois anos depois da sua última revisão, que a OMS actualiza esta lista, conduzindo o termo “Trans” para a categoria de saúde sexual. Recordemo-nos que foi há 32 anos (17 de Maio de 1990) que a OMS retira a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, uma alavanca para a despatologização e discriminalização que as pessoas lésbicas, gays e bissexuais viam ser remetidas em grande parte dos países do Ocidente, permitindo o reconhecimento da sua liberdade sexual e direitos civis.
As leis e directivas nacionais e internacionais possuem este papel determinante de reconhecimento dos direitos humanos e atribuição do estatuto de cidadania a pessoas habitualmente excluídas, subalternizadas pelo privilégio da cisgenereidade heteronormativa, discriminadas interseccionalmente pela sua diversidade de género, orientação sexual, estado sorológico, raça/etnia e/ou classe social.
Em Portugal, nos últimos 10 anos, a construção de um quadro legal que protege as pessoas com base na sua orientação sexual, identidade de género e características sexuais, tem atraído a atenção internacional no campo das políticas sociais e do reconhecimento da igualdade de género e da cidadania sexual. Recordemo-nos o ano de 2018, um dos marcos mais importantes ao nível do reconhecimento legal dos direitos das pessoas trans, sendo aprovada a lei que reconhece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à protecção das características sexuais de cada pessoa, a maior conquista na despatologização da identidade de género, retirando a supervisão desta categoria da esfera médica. Esta lei veio aperfeiçoar a sua antecedente, a Lei nº7/2011 de 15 de Março, outro marco inovador na história dos direitos LGBTQI+ em Portugal, criando o inicial procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil ainda que por via da obrigatoriedade do relatório médico que atestasse a “perturbação de identidade de género”.
Desta forma, em Portugal, actualmente, maiores de 18 anos têm acesso à auto-determinação de género (legal/penal) e menores entre os 16 e os 18 anos têm-na condicionada por um atestado de consciência e pela autorização parental. Ainda que o pioneirismo na lei portuguesa revele a mudança no reconhecimento e protecção da diversidade de género e sexual aos cidadãos portugueses, na prática, continuam a existir entraves estruturais para que pessoas trans e não binárias possam viver plenamente todas as esferas das suas vidas dignamente. Desde logo, as dificuldades reconhecidas ao nível do acompanhamento e assistência médica no acesso universal à saúde, quer ao nível da falta de formação dos profissionais de saúde sobre as matérias de saúde sexual, como na imposição violenta do marcador de género binário, continuando a inexistir o reconhecimento legal destas identidades assim como do reforço dos estereótipos distorcidos dos papéis de género. As instituições médicas continuam, assim, a determinar e moldar os usos dos corpos, dos corpos não conformados, assemelhando-os ao modelo de corpo cisgénero binário. O reconhecimento de pessoas trans em Portugal, sem cidadania portuguesa, continua a ser impedido, perpetuando as práticas discriminatórias de acesso a serviços púbicos e segurança na via pública pelo não reconhecimento da sua identidade social. As “terapias” e “tratamentos” de conversão sexual e de identidade de género, continuam a afirmar as normas binárias de género e a segregação do sexo aos códigos de género, contribuindo para o estigma da diversidade e a formas de violência sexista que matam.
O reconhecimento de pessoas trans em Portugal, sem cidadania portuguesa, continua a ser impedido, perpetuando as práticas discriminatórias de acesso a serviços púbicos e segurança na via pública pelo não reconhecimento da sua identidade social. As “terapias” e “tratamentos” de conversão sexual e de identidade de género, continuam a afirmar as normas binárias de género e a segregação do sexo aos códigos de género, contribuindo para o estigma da diversidade e a formas de violência sexista que matam.
A visibilidade trans e a sua protecção legal continuam a ser ameaçadas por discursos de género radicais, contrários à autodeterminação e reconhecimento legal de género, são costumes as vozes que se afirmam contra o uso de espaços genderizados, como o uso de espaços femininos por mulheres trans, a crítica ou não permissão do uso de bloqueadores hormonais para crianças trans, assim como o uso dos social media e plataformas digitais para propagar conteúdos de desinformação e diabolização da feminilidade e masculinidade das pessoas trans. As leis sobre a auto-determinação da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, revelam uma centralidade inquestionável no reconhecimento de dignidade e qualidade de vida das pessoas trans, no entanto, as práticas sociais revelam que a luta pela visibilidade, a promoção da igualdade de género e o combate à violência são ainda mais que necessárias. O preconceito continua a existir por força da ignorância e desconhecimento sobre estas matérias, sobre como nos dizem de quem devemos ser e como nos devemos comportar, do dever em cumprir os códigos sociais de género definidos “naturalmente” à nascença, conforme o “pipi” ou a “pilinha”, és menino ou menina. A educação consciente, o pensamento crítico, reivindicativo, e activista sobre a dessencialização e despatologização das normas de género, parecem-me ser, sem margem de erro, o caminho necessário para a construção da visibilidade, protecção e respeito pela diversidade das vidas de todes nós. Por isso, neste dia de celebração da visibilidade trans, pensemos nas narrativas soberanas de género que continuam a determinar e condicionar os nossos corpos e identidades plurais e a forma como todos nós, do nosso lugar de fala, performativamente, as podemos contrariar.
Daniel Santos Morais,
Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.