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Bar 106, 33 anos de encontros, festas e mensagens

 bar 106 josé soares

José Soares e Keith Mason abriram o bar 106, no número 106 da rua de São Marçal, há 33 anos. Em entrevista ao dezanove.pt, José Soares conta as “estórias” da História de um bar que acompanhou a emancipação da cultura LGBTQIA+ de Lisboa. 

 

O 106 está aberto desde 20 de Maio de 1990 e nas suas quatro paredes realizaram-se festas que ficaram para sempre a ecoar como a festa da mensagem ao domingo, as festas de carnaval e o Halloween. Ponto de encontros e de diálogos, o bar foi ainda espaço das primeiras reuniões da ILGA e da organização dos primeiros Arraiais Pride da cidade. 

 

dezanove: Quando tu dizes que é um bar para toda a gente, falas aqui dentro porque era um bar à porta fechada. Ainda estamos na época do medo? 

José Soares: Havia medo do que podia acontecer do lado de fora. Fechávamos a porta para as pessoas se sentirem seguras. Para não haver receio e porque queríamos ser um lugar seguro. Para as pessoas estarem à vontade e não terem problemas. Nós ainda chegamos a ter rusgas. Ainda havia rusgas da polícia na altura, ainda era o Governo Civil, punham a carrinha com a porta aberta e identificavam toda a gente. Quem não tinha identificação? Os estrangeiros, ? Quem estava era identificado, os estrangeiros eram acompanhados ao hotel para mostrarem o passaporte e depois voltavam. 

 

Então havia esse medo no início?

Olhando para trás acho que não havia medo. A noite gay nessa altura não havia medo. A atitude na altura era muito parecida com o que é agora. Era raro ver alguém de mão dada. As manifestações eram mais contidas e havia muita gente no armário. 

 

Quando isto abriu era mais um lugar de engate ou um lugar de encontro?

Mais de encontro, como o Surpresas, o bar anterior ao nosso. As pessoas vinham aqui para tomar um copo e conviverem antes de irem para as discotecas. Antes ficavam no Guerin, ao pé do Condes, o actual Hard Rock, na Avenida da Liberdade e em frente havia uma esplanada. 

 

Esses pontos de encontro foram fundamentais numa altura em que não havia telemóveis e muito menos redes sociais?

Não havia telemóveis e para combinar com os teus amigos tinhas que fixar o encontro no dia anterior. Havia muito pouca gente a viver sozinho em casa e não dava para ligar para aquelas pessoas que estavam em casa dos pais. Havia poucas pessoas que viviam sozinhas. 

 

Havia muitas pessoas no armário?

Sim, ainda havia muita gente no armário, mesmo as pessoas que vinham de outras partes do país. Porque fora de Lisboa não havia quase nada. Havia no Algarve e no Porto apenas. A chegada a Lisboa fazia do nosso bar um ponto de encontro e de reconhecimento numa comunidade ainda fechada. Mas cá dentro não. Aqui bebia-se um copo e abríamos a porta a toda a gente. 

 

E quando é que começa a vossa festa da mensagem?

A festa da mensagem começa nos anos 90 para aí um dois anos depois e era aos domingos, sempre. Foi a festa mais importante que tivemos. Para tentar explicar como funcionava a festa da mensagem seria um live Grindr. A rede social era feita com papel e caneta. As pessoas recebiam uma etiqueta com um número à entrada e depois mandavam mensagens para os números que colocavam num quadro que tínhamos aqui. As pessoas conheciam-se, falavam e combinavam as suas coisas. Houve muitos casamentos e muitos divórcios também (risos). 

 

Com o aparecimento das redes sociais de engate na internet vocês sofreram impactos de clientela?

Sim. Com o Gay Romeo e o Manhunt não, mas com o Grindr sim. Houve impactos em todo o mundo. Houve muitos bares que fecharam por causa do Grindr

Antes disso, os bares daqui do Príncipe Real e Praça das Flores começam a ter a concorrência dos bares do Bairro Alto como o Portas Largas, o Sétimo Céu e o Frágil e nessa altura somos afectados porque as pessoas podem estar na rua. Esse estar na rua retirou-nos alguma clientela, mas isso não é mau. Passou a ser também uma das vantagens da vida LGBTQ lisboeta, poder estar na rua e engatar ao vivo. 

Nós passamos a ser um dos locais de início da noite e depois a malta fazia as capelinhas todas. 

bar 106 lisbon gay

 

O 106 chegou a ser a sede informal da ILGA no início da luta LGBTQIA+ em Lisboa e em Portugal?

As primeiras reuniões da ILGA foram aqui, porque eles não tinham sede. Eu fazia parte da ILGA também. O primeiro arraial Pride da ILGA em 1997 teve o meu contributo e de muitos activistas. Nessa altura a ILGA já tinha o centro LGBT da rua de São Lázaro. O primeiro Pride foi muito importante para a nossa comunidade, porque podemos sair à rua e divertir-nos. Organizamos um arraial com a colaboração da Câmara Municipal (João Soares como presidente da Câmara Municipal de Lisboa) e teve a participação de todos os bares e discotecas na altura. Foi no Príncipe Real e como foi o primeiro teve aquele carácter mais arcaico e informal. Nessa altura convém dizer que fomos ameaçados pelas forças mais conservadoras, porque havia cartazes no jardim com palavras de ordem homofóbicas. A mobilização da Câmara e da polícia foi essencial. 

Então fizemos, pontos de venda de cerveja, havia uma mesa de jardim onde as pessoas levantavam as senhas e depois iam aos pontos dos bares para pedir bebidas. Começou à tarde e às seis da tarde há uma carga de água e pensamos que ninguém iria vir mais. Mas não. A chuva parou e depois o arraial decorreu até às quatro da manhã e o arraial existe até hoje. 

 

A chuva abençoou o arraial Pride?

O Príncipe Real foi o local onde tudo começou. Ainda se realizou mais duas vezes ali, depois andamos de um lado para o outro. Houve uns anos que foi na Praça do Município, depois o presidente Santana Lopes mandou o Pride para Belém, depois para o Parque do Calhau, em Benfica, depois ainda estivemos na Praça da Figueira até que, com António Costa, nos instalamos no Terreiro do Paço. O Arraial Pride acompanha a forma como a comunidade foi sendo tratada pela classe política.

O Arraial Pride acompanha a forma como a comunidade LGBTI+ foi sendo tratada pela classe política.

 

Tiveram que conquistar a cidade?

Sim, tivemos de “penar” para conquistar o nosso espaço. O nosso espaço de liberdade. Lisboa sempre foi um espaço de liberdade e de expressão. As pessoas em Lisboa são mais abertas e todo o nosso percurso, no contacto com as comunidades, os vizinhos e as pessoas abriu as mentalidades, para uma visão menos intolerante face às nossas expressões e manifestações públicas. Também criamos essa cultura de diálogo com aqueles e aquelas que não sabiam o que eram gays e lésbicas e travestis, que era o termo usado na altura. Obviamente que, em 33 anos, houve momentos de maior tensão e claro que houve casos de violência. Mas nós também fomos porto de abrigo e de protecção. E queremos continuar a ser. Não podemos viver com medo.

Nós também fomos porto de abrigo e de protecção. E queremos continuar a ser. Não podemos viver com medo. 

 

bar 106 principe real.jpeg

 

Do que é que tens mais saudades nestes 33 anos?

Dos carnavais aqui do 106 que eram fantásticos. Eram cinco dias de festa e de disfarce. Eram festas que não paravam e nós aproveitávamos ao máximo para dançar, rir, e também desfilar a nossa alegria. A malta mascarava-se e andava de sítio em sítio depois de sairmos daqui. Íamos para o Finalmente e depois de madrugada, já à hora do pequeno almoço, depois de tudo fechar ainda havia desfile de máscaras na pastelaria Suíça na Praça da Figueira. E havia pessoas que iam só para ver os figurinos e a nossa exuberância. Era tudo possível, os cinco dias de divertimento à séria. 

Também fomos nós que fizemos o primeiro Halloween que agora é celebrado em Portugal. 

A partir daí os bares começaram a fazer o Halloween ao ponto de, neste momento, essa festa até ter mais importância do que o Carnaval. 


Entrevista de André Soares