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Bottoms Club: as pessoas queer também se sabem defender

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Terminou recentemente no Porto a primeira edição do Bottoms Club, um curso de defesa pessoal desenhado especialmente para o público LGBTQIA+. O crescente número de agressões contra a comunidade, de que algumas pessoas participantes já tinham sido alvo, motivou esta iniciativa. A adesão superou as expectativas e em Setembro haverá uma nova edição.

 

 

Começando pelo nome. A inspiração vem do filme Bottoms (2023), uma comédia satírica que conta a história de duas amigas adolescentes, lésbicas, que decidem criar um clube de autodefesa feminista para aumentar a sua popularidade na escola. A história de empoderamento dos underdogs num ambiente hostil deu a ideia para o título deste curso orientado para pessoas queer, que decorreu entre os meses de Junho e Julho nas instalações de A Piscina, no Porto.

A referência ao filme cómico despressuriza as verdadeiras, e mais sérias, razões para a criação do grupo. Tudo partiu de uma noite de violência, de uma agressão homofóbica de que Eduardo Vidigal e outras pessoas LGBTQ foram alvo, no Porto, há cerca de um ano. Eduardo procurou desenvolver as suas aptidões de defesa pessoal, inscrevendo-se num curso para o público em geral, mas sentiu que o ambiente das aulas não o deixava confortável e que a sua motivação não era a mesma dos seus colegas, quase todos homens heterossexuais adultos. Enquanto para o resto da turma aquela era mais uma modalidade desportiva, ele estava ali para aprender a proteger-se de ameaças bem reais.

Eduardo não era o único a ter experienciado violência homofóbica. “Quando se fechou a turma [para a primeira edição do curso], muitos partilharam histórias idênticas de agressão”, conta. Mesmo quem não tinha passado por situações de ofensas físicas, sentia o aumento da tensão nas ruas e nos espaços públicos, das agressões verbais e dos comportamentos discriminatórios. Não existiam cursos de autodefesa desenhados para as preocupações e especificidades das pessoas LGBTQIA+. O Bottoms Club surgiu para dar resposta a essa carência.

 

Abordar situações concretas de perigo

De início, houve quem criticasse a ideia. Não compreendiam o porquê de se promover um curso direccionado apenas para pessoas queer. Mas, com o decorrer das aulas, foi-se evidenciando a necessidade de uma abordagem diferente. Fábio Galdi, o instrutor do curso, conta que logo de início foi possível criar um espaço de confiança e de partilha. “As dúvidas surgiam quando se falava dos temas e, como o ambiente era muito tranquilo e muito aberto, as pessoas sentiam-se à vontade para colocar várias questões”, conta Fábio, com es alunes a relatarem experiências ou cenários hipotéticos para os quais precisavam de uma resposta adequada. “Com o feedback das pessoas, fomos preparando casos e situações específicas, que se foram acrescentando ao plano mais geral que tínhamos desenhado inicialmente”, explica Eduardo. A turma era constituída maioritariamente por homens cis na casa dos vinte e trinta anos, mas também por mulheres cis e pessoas não-binárias na mesma faixa etária.

As ameaças não surgiam apenas de fora da comunidade. Houve participantes que denunciaram situações de violência em contexto doméstico. Para Eduardo, as dating apps usadas para encontros afectivos e sexuais trazem um risco significativo relacionado com o desconhecimento do outro, podendo originar situações de coação ou mesmo de violação. Num outro exemplo de um aluno que trabalha num bar, num espaço pequeno e apertado e, por isso, dispondo de menor liberdade de movimentos em caso de reposta a uma agressão, foi pedido a Fábio que desenvolvesse uma resposta adaptada àquele contexto.

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A arte de ajudar o mais fraco a neutralizar o mais forte

Fábio Galdi tem 37 anos e é natural do Rio de Janeiro. Durante a pandemia, abriu em Vila do Conde a Galdi Academi, onde é instrutor de jiu jitsu, oferecendo aulas adaptadas a vários públicos. Na preparação do plano de formação, tem em conta as características físicas, sociais e pessoais de cada turma. Um amigo da sua namorada veio-lhe propor um curso específico para pessoas queer. Fábio disse imediatamente a Eduardo que aceitava o desafio. 

Como explica o mestre, cinturão negro nesta arte marcial, o ponto de partida do jiu jitsu é muito simples. “É uma arte baseada em alavancas. Tem como premissa a pessoa mais fraca poder controlar e neutralizar um perigo, um agressor mais forte. O objectivo é usar a física e o corpo a nosso favor”. Isto implica, claro, um domínio do corpo do outro. Houve participantes que, ao início, se sentiram inibidos com o contacto físico que os treinos exigiam. Para as pessoas LGBTQ, “o toque na outra pessoa é sempre muito premeditado”, afirma Eduardo, assumindo que houve um processo de habituação, não só entre mestre e alunes. “Mesmo entre nós havia esse pudor do toque”, confessa. Com o decorrer das aulas, essa apreensão foi passando. “Houve uma ‘dessexualização’ do toque. Não te estou a tocar porque tenho interesse ou porque gosto de ti, mas porque estamos a praticar. Este toque vai-te ser útil”. No Bottoms Club, impôs-se a noção de que o exercício da força sobre o outro naquele contexto controlado iria ajudar a enfrentar situações de perigo no “mundo real”.

O que para Fábio mais caracterizou esta experiência face às restantes turmas de que é instrutor foi o interesse que tinham em aprender. “Eram muito dedicados. As aulas passavam rápido. Era transmitida muita informação, sem distrações, com muita dedicação mesmo. Tanto que alguns deles se machucaram de tão empenhados que estavam em fazer os movimentos”, afirma. “Aproveitaram a oportunidade para aprender, mais do que o normal!”, nota Fábio, que também orienta aulas exclusivamente direccionadas a crianças, adolescentes ou mulheres, por exemplo.

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Sentir a discriminação

Nos primeiros contactos com a turma, também ficou claro que a aprendizagem não seria apenas no sentido mestre-alunes. Fábio conta que teve de adaptar o seu “linguajar”, de forma a tratar todes com o seu habitual jeito carinhoso e brincalhão, mas sem o risco de ofender ou deixar alguém desconfortável. Como veio a reconhecer, o jiu jitsu e o mundo das artes marciais em geral é dominado por uma masculinidade exacerbada. Conta que Eduardo lhe deixou essa chamada de atenção. As pessoas estavam no Bottoms Club porque viam nesse ambiente ultra-masculinizado uma forma de opressão, limitadora das suas identidades queer. Fábio conseguiu em pouco tempo criar um espaço acolhedor e inclusivo.

Ao espalhar-se a notícia de que aceitara ser instrutor daquela turma, Fábio passou a ouvir de outros alunos e colegas alguns comentários depreciativos. “Diziam ‘como é que eu vou falar para os meus amigos que o meu mestre de jiu jitsu dá aulas LGBT’. Diziam isto sempre na ‘brincadeira’, claro», relata Fábio. Confessa que foi nesse momento que pôde verdadeiramente constatar a discriminação dirigida à comunidade queer. “Eu comecei a perceber, e compartilhei com eles, que não tinha noção de como era viver assim, [que no caso deles era] o dia inteiro e a qualquer lado que se vai. Foi libertador conhecê-los melhor, e isso me trouxe uma proximidade muito grande com o grupo. Inclusive, quando teve a marcha [do Orgulho do Porto] me deram um pin de aliado. Agora sinto-me mesmo aliado. Abracei a causa”.

 

Nova edição em Setembro

Está já agendada uma nova edição do curso em Setembro, que será dupla. Está prevista a continuação do treino para a turma que já teve formação, e de outra para iniciados. As aulas decorrerão previsivelmente aos domingos e às segundas-feiras. Os interessados em participar deverão estar atentos às redes sociais de A Piscina, onde em breve será divulgada mais informação.

Quanto à preparação física, não há nenhum requisito mínimo para o ingresso no curso. Ainda assim, e pensando sempre nos potenciais cenários de perigo, é aconselhado que as pessoas se mantenham activas. “Eu faço desporto, mas aguentar e segurar alguém, não ficar exausto e ter resposta imediata, requer alguma preparação física”, comenta Eduardo. “Num momento de agressão, vamos precisar do corpo”, acrescenta, lembrando que no ataque de que foi vítima no ano passado o seu agressor apresentava uma condição física muito boa. Refere que mesmo para dar início a uma corrida de fuga da situação de violência é preciso rapidez e resistência.

A partir da experiência que tem tido com Fábio, Eduardo admite ainda criar uma formação orientada para instrutores de cursos de defesa pessoal, sensibilizando-os para as especificidades e necessidades das pessoas queer. “É importante criar mais espaços em que as pessoas se sintam bem. Não basta pôr uma bandeirinha à porta”, avisa. 

Com o aumento das agressões no passado recente e com o agravamento do clima de hostilidade contra a comunidade LGBTQIA+, iniciativas como o Bottoms Club surgem cada vez mais como uma preparação básica, de efectiva sobrevivência. Não é só uma posição de alerta face ao perigo. É uma declaração de verdadeiro empoderamento perante a adversidade. 

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Fotos cedidas por Eduardo Vidigal

Pedro Leitão

 

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