Brasil: Travestis e trans saídas do sistema prisional participam em oficina teatral
O site dezanove.pt conversou com o educador e ativista Murilo Gaulês de 33 anos, a respeito da oficina de teatro que aconteceu na Casa Florescer II, um espaço que acolhe e dá assistência a mulheres trans e travestis em São Paulo, Brasil. O foco do evento é promover dinâmicas para fortalecer ensinar mulheres trans e travestis a lidar com as situações de dor e violência, estimulando o autocuidado, proteção e autoestima, através da arte. A oficina começou no dia 14 de Março e durou 4 dias.
dezanove: A Casa Florescer, equipamento de assistência para mulheres trans e travesti atende quantas pessoas atualmente?
Murilo Gaulês: A Casa atende 30 mulheres trans e travestis residentes. Mas acho importante salientar que não somos funcionários da casa. O projeto TRANSgressoras é executado por dois coletivos da sociedade civil: a CiA dXs TeRrOrIsTaS e o Grupo do Trecho. Ambos os grupos trabalham com populações vulneráveis e estabelecem redes com outros coletivos latino-americanos na busca por novos procedimentos de produção de autonomia e estados de bem viver. Recentemente nossos grupos foram contemplados por um edital da secretaria de cultura da cidade de São Paulo: o Fomento à Cultura da Periferia, a partir do qual conseguimos verba para a realização de todas as atividades. A Casa Florescer tem sido nossa parceira no processo e nos cedido seu espaço para a realização de nossas atividades.
A Casa Florescer seria um local onde elas tem um espaço para dormir/alimentação sendo uma espécie de albergue/moradia permanente?
Outra coisa importante de lembrar é que o projeto que estamos desenvolvendo acontece na Casa Florescer II, localizada na região norte de São Paulo. A Casa Florescer foi um projeto desenvolvido durante a gestão Haddad pela Secretaria de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo, que inaugurou uma casa na região do Bom Retiro para acolhida de mulheres trans e travestis em situação de rua e vulnerabilidade. Essa casa já possui 4 anos de existência. A Casa Florescer II é uma continuidade deste projeto e foi recém inaugurada em 4 novembro. Essa casa para nós do projeto TRANSgressoras tem uma importância fundamental para o território por conta de sua localização geográfica. A Zona Norte de São Paulo é conhecida por ser a mais conservadora de toda a cidade, concentrando o maior número de equipamentos da polícia militar e civil por metro quadrado. São bairros com pessoas em sua maioria mais velhas e com uma forte presença do discurso religioso nos contextos sócio-politicos da região.
Como surgiu a ideia dessa oficina teatral?
O projeto "TRANSgressoras ou Como recuperar o fôlego gritando" consiste em uma série de atividades voltadas para produção de autonomia e bem viver de mulheres trans e travestis egressas do sistema prisional. A proposta visa usar a cultura e a arte, associadas a outras expertises e áreas de conhecimento, para diagnosticar as condições de vulnerabilidade dessa população e intervir coletivamente a partir do protagonismos das próprias. Essa oficina é uma dessas atividades, assim como as Oficinas de Voz para Mulheres Trans e Travestis, aulas de defesa pessoal, gastronomia periférica, educação em direitos, escrita criativa, edição de vídeo e fotografia, corte e costura. As atividades são voltadas especificamente para travestis e mulheres trans e privilegiamos a presença de egressas do sistema prisional. A oficina de Teatra da Oprimida foi fruto de muita troca com as meninas da Casa Florescer e as equipes do projeto para pensar possibilidades de autocuidado. Entendemos que lidar com feridas tão profundas como a violência institucionalizadas das prisões a que muitas dessas mulheres são submetidas (e dentro de um sistema que criminaliza travestis, fazendo com que a polícia e a cadeia sejam algo constante em seu imaginário), precisaria de um primeiro espaço seguro onde elas pudessem ser ouvidas sem nenhum exigência violenta. Os recursos de Teatra da Oprimida, mediados por nossa parceria Matuzza, possibilitam lidar com temas muito complexos em um espaço mais descontraído, de escuta e cuidado, fortalecendo a auto-estima dessas mulheres para um mergulho profundo no autoconhecimento e no encarar das cicatrizes causadas por um sistema transfóbico e genocida.
Todas as mulheres trans e travestis que fazem parte da Casa Florescer são egressas do sistema prisional?
Não.
Quantas trans e travestis irão participar da oficina? Sendo uma oficina teatral, haverá uma prof(a) de teatro dramatizando situações do cotidiano das mulheres trans/travestis?
A oficina é aberta e resolvemos não colocar número de vagas. Basta chegar e ser trans. A responsável pela oficina é Matuzza, mulher preta, travesti, egressa do sistema prisional que trabalha com redução de danos e é multiplicadora das técnicas de Teatro do Oprimido (ou sua versão adaptada, a Teatra da Oprimida). Matuzza também trabalha no coletivo É de Lei, com práticas de redução de danos para mulheres trans e travestis da Cracolândia. Por conta da sensibilidade do trabalho, optamos por formar uma equipe que contasse com formadoras trans e travestis, já que isso possibilitaria outro contato afetivo com o público atendido. Nossa oficina de voz é realizada pela atriz, cantora e performet Marina Mathey, travesti famosa por interpretar a personagem Ariel na série 3% da Netflix. Teremos também oficinas de escrita criativa com a dramaturga Ave Terrena Alves, que também parte das suas vivências com as trasngeneridade para produzir textos de teatro e roteiros que já circularam por todo o Brasil. A curadoria de todos os processos é realizada por Márcia Marci. Ainda sobre a oficina de Teatra da Oprimida, a proposta não está em dramatizar, mas evocar as vozes em primeira pessoa dessas mulheres para que possam trazer suas questões à público. É vem mais do que um ato artístico, mas um exercício político. Utilizando o teatro como plataforma, elas podem evocar suas memórias e vivenciar situações de perigo em um espaço seguro, compartilhando suas tecnologias de sobrevivência à essas situações e aprendendo novas formas de lidar com as opressões cotidianas que lhes atravessam.
Serão 4 dias de oficina, como será essa programação?
Essas oficinas de Teatra da Oprimida fazem parte de um ciclo de formação que chamamos de "Espaços de autocuidado e bem viver". Elas estão previstas para acontecer a cada 15 dias todos os sábados com a participação de diversos parceiros. A formação de Teatra acontecerá no mês de março e volta em maio, de acordo com a programação. Toda a programação será lançada em partes e divulgada no site https://transgressoras.wixsite.com/home.
Qualquer pessoa pode ir na oficina, digo para assistir?
Isso depende. Como o protagonismo é todo voltado para as mulheres trans e travestis, elas quem decidem a medida de participação das pessoas cisgêneras. Alguns encontros nem os cis da equipe acompanham. Já outros somos convidados para estar e compartilhar das situações propostas. As TRANSgressoras tem total autonomia para decidir sobre esse espaço a partir das necessidades e demandas que surgem durante o processo formativo.
Poderia falar um pouco sobre o projeto "TRANSgressoras?
O projeto TRANSgressoras busca encontrar, pela interseção de vários saberes distintos e em rede, possibilidades de produção de autonomia, reconhecimento coletivo e denuncia para mulheres trans e travestis egressas do sistema prisional. Entendendo a cultura como caminho para compreender e a arte para reinventar realidades, o projeto utiliza de recursos do fazer em arte como arsenal bélico de resistência a violência institucionalizada contra mulheres trans.
A violência socialmente legitimada e institucionalmente aplicada contra mulheres trans e travestis exige uma compreensão profunda de uma série de aspectos que cerceiam o cotidiano dessas mulheres.
A dificuldade de ingressar no mercado de trabalho, o abandono da família, a imposição do trabalho sexual como alternativa de sobrevivência são alguns dos fatores que configuram um ciclo de violências na vida dessas mulheres e que subtraem suas possibilidades de autonomia colocando-as em situação de rua ou institucionalizadas.
Segundo dados oficiais, o segundo maior crime que coloca travestis nas prisões é roubo. No entanto, boa parte dessas condenação ocorrem por conta de uma policia despreparada que não reconhecem as coreografias que operam nas pistas com mulheres T: travestis oferecem seus serviços sexuais, os homens cis (em sua maioria pais de família) não pagam o programa, elas cobram o serviço e são consequentemente denunciadas e presas por roubo. O estudo aprofundado do pesquisador e mestre em direito Victor Serra (integrante do coletivo), em seu livro "Pessoa Afeita ao Crime: criminalização de travestis e o discurso judicial criminal paulista", evidencia essa coreopolítica de morte contra corpos trans ao analisar 100 acórdãos do TJ de SP com a palavra-chave "travesti".
Esse CIStema compulsório e genocida gera um ciclo que encarcera mulheres trans e as coloca em situação de absoluta vulnerabilidade quando conseguem seu alvará de liberdade.
Com um estigma de travesti e um selo de criminosa tatuado na carne, parece pouco efetivo acreditar que apenas cursos profissionalizantes possibilitem a reinserção dessas mulheres na sociedade de forma autônoma, digna e emancipada. Nossa experiência nos mostra que é necessário um projeto complexo de acolhida que pense de forma integrada e em rede meio de fortalecer essas mulheres psicológica, social, afetiva, física e financeiramente.
Esses corpos, vulnerabilizados ao extremo, tem maiores dificuldades de lidar com práticas de autocuidado e com as burocracias provenientes da normatividade pautada em nossos sistema mundo. Afinal, práticas de autocuidado exigem um reconhecimento de si e uma percepção profunda de sua autoimagem, trazendo feridas mascaradas de suas histórias para a superfície (o que muitas vezes é evitado no processo de sobrevivência dessas mulheres levando-as à desistência ou abandono destes processos.
Com isso o projeto oferece formações e acompanhamentos diversos como Práticas de Voz para Travestis (já que o desconforto com as imposições de gênero sobre essas mulheres faz com que estas percam seu lugar de fala e não consigam se expressar seja em entrevistas de emprego, na vida social ou na luta por seus direitos básicos), Aulas de Escrita Criativa (onde aprendem a narrar sua própria história e com isso conseguem organizar documentos narrativos de ordens diversas como perfis em redes sociais, currículos, redações para vestibular e/ou processos seletivos, etc), Aulas de Defesa Pessoal, Cursos de Corte e Costura, Gastronomia Periférica, Edição de Vídeo e Fotografia, Práticas de Autocuidado entre outras.
Dessa forma, este projeto visa a continuidade dessas ações afirmativas com recurso suficiente para promover um atendimento cada vez mais efetivo, otimizando os resultados e melhorando a qualidade de vida dessas mulheres que precisam de uma reparação adequada às marcas que a transfobia historicamente tem promovido nesses corpos.
O projeto acontece dentro de uma casa abrigo no Tucuruvi, Zona Norte de São Paulo, que acolhe mulheres trans e travestis em situação de rua. (vale lembrar que, segundo dados da SMADS, 60% da população de rua é egressa do sistema prisional). Dessa forma o projeto acolhe, em primeira instância, as periferias da região norte de São Paulo, mas também alcança mulheres T migrantes de outras regiões e Estados brasileiros.
Além das atividades formativas pretendemos montar um espetaculo de teatro e uma obra audiovisual como instrumentos de denuncia à violência sistêmica que travestis são condicionadas dentro das prisões e como suas vidas operam depois dela.
Quais são as principais barreiras que travestis e trans enfrentam quando egressas do sistema prisional?
Todas as pessoas egressas do sistema prisional enfrentam extrema dificuldade de reinserção no mercado de trabalho e na reconstrução dos laços familiares e afetivos. Para as travestis e demais pessoas trans, esses processos são ainda mais profundos. Em geral, essas pessoas já contam com pouquíssimo apoio familiar e afetivo, sendo que grande parte das trajetórias de vida são atravessadas por expulsões, abandonos e violências, e as relações que conseguem construir são, em geral, com outras pessoas em situação de vulnerabilidade. Quando encarceradas, as pessoas do círculo de apoio têm dificuldade de realizar visitas e ajudar na sobrevivência delas presas, e isso intensifica o abandono e a precariedade de suas vidas na prisão. Quando saem, têm dificuldade de reatar laços afetivos e reconstruir suas vidas, especialmente porque a sociedade que já não emprega travestis, emprega ainda menos travestis egressas. E existe ainda uma outra intensificadora: o sistema de justiça criminal, quando decide pela liberdade dessas pessoas presas (livramento condicional, regime aberto, dentre outras possibilidades jurídicas) costuma exigir comprovante de residência e ocupação (estudo e/ou trabalho), o que parece bastante descabido quando consideramos a realidade que essas mulheres já enfrentavam antes da prisão. Nesse sentido, entendemos neste projeto que esses corpos são socialmente marcados como "travestis" e como "egressas", o que intensifica a percepção cultural de que elas são pessoas violentas, instáveis, agressivas, criminosas, doentes. E isso as empurra cada vez mais para as margens da sociedade, para situações cada vez mais vulneráveis e inumanas.
Saberia dizer quais são as principais razões que as levam ao sistema prisional?
Segundo diversas pesquisas e relatos, travestis e mulheres trans são socialmente entendidas como pessoas perigosas, doentes, violentas e criminosas. Os motivos que as levam para a prisão, muitas vezes sem qualquer prova ou rigor investigativo e jurídico, são principalmente roubo e tráfico de drogas. Nos casos de roubo, a maioria trata de cobranças de programas sexuais, situações em que clientes homens se recusam a pagar e quando são cobrados, acionam a força policial alegando terem sido extorquidos e/ou roubados. Nos casos de tráfico, mais heterogêneos, são três as situações mais recorrentes: quando essas mulheres atuam como "mulas" (transportam a droga para alguém); quando atuam como "olheiras" (vigiam lugares em que a droga está guardada); e, com menor recorrência, quando revendem pequenas quantidades, seja para outras travestis ou para seus clientes de programas sexuais. Em todos os casos, trata-se de uma rede bastante complexa de violência e vulnerabilidade, em que as ruas são praticamente a única opção de sobrevivência para esses corpos expulsos de casa, da escola, dos espaços de saúde e trabalho formal. E as ruas são atravessadas pelo crime organizado, pelas milícias, por todo tipo de homens violentos (sejam clientes ou apenas "defensores da moral e dos bons costumes"). Nesse sentido, entendemos que a vulnerabilidade causada pela transfobia é intensificada nesses espaços, os únicos que a transfobia permite que elas vivam coletivamente, e que são mais fortemente vigiados e higienizados pela polícia - caracterizando um processo profundo de marginalização, criminalização e genocídio.
Como organizador, qual é o principal objetivo desse evento?
Como já dito, a situação em que estas mulheres trans e travestis estão não consegue possibilita o alcance de sua autonomia com um curso profissionalizante. É necessario criar redes de apoio e distribuir aprendizagens complexas para que elas possam atuar frente às violências institucionalizadas que as atravessam.
O objetivo do projeto é fomentar essa rede em busca dessas tecnologias de promoção à autonomia, bem viver e denuncia na resistência contra a opressão transfobica legitimada também pelo Estado.
Você atua na Casa Florescer também?
Somos apenas colaboradores do espaço. A pouca verba que a prefeitura destina a casa impossibilita a realização de atividades no espaço. Com isso, muitas delas passam o dia deitadas em suas beliches ou em frente a uma televisão assistindo video-clipes. Atuamos com a oferta de atividades para a casa como membros da sociedade civil interessados em contribuir com a causa.
E parcerias? Já surgiram
Um movimento que temos feito durante todo o projeto é o de oferecer uma alimentação de qualidade para essas meninas durante as atividades. Há um problema quando vocês está dentro de uma instituição e não tem mais o poder de escolher o que quer comer. A casa oferece três refeições por dia para as meninas, mas a gente está tentando oferecer uma comida diferente para elas, com itens que não costumam estar no cardapio da casa. Comer junto é uma forma de promover laços e estabelecer relações de afeto, acreditamos nisso. Outro problema que temos é com a questão do transporte pra leva-las a atividades externas. Seria muito bacana se a gente conseguisse parceiros em redes de comércio de alimentos e transporte para isso.
André Araújo, jornalista e consultor de turismo. Colaborador do dezanove.pt a partir do Brasil
Nota: Este texto foi escrito antes da actual situação de pandemia do covid-19. Neste momento esta e outras atividades encontram-se condicionadas em todo o Brasil.