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Cartas de uma pessoa terrorista

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Contexto: Na semana passada descobri que estou na lista terroristas de Novembro, da Habeas Corpus. Estou descrita, com todas as outras pessoas da lista como “integrante do movimento político-terrorista LGBTQIA+”. Contudo, esmeraram-se na minha descrição, que se lê na integra desta forma:

 

“Não sabe se é homem ou mulher. Feminista. Assume-se como não binário. Activista. Bombeira Voluntária. Colaborador do site homossexual Dezanove”.

Devo confessar que me sinto exposta, vulnerável, vítima de um crime de ódio e de uma violação, sobretudo pelo questionamento do meu género… quase como se do nada alguém se aproximasse a mim e me puxasse as calças e a minha roupa interior para expor o meu órgão genital, discutindo e argumentando sobre o mesmo em público.

Algumas destas cartas estão escritas com uma dose de humor e uma pitada de sarcasmo, enquanto outras estão escritas de forma mais literal, séria e reflectida. O objectivo não é destacar a lista ou a sua organização, mas sim o reforço da ideia de que somos pessoas, com sentimentos e emoções, e que é criminoso exporem-nos da forma como nos tem exposto. 

 

  • À minha esposa:

Amor, estou na lista de terroristas… eu sei que tu não estavas à espera de receber esta notícia, muito menos desta forma, mas é verdade: eu estou numa lista de terroristas. Podes perguntar-me como ou porquê, mas eu não te sei responder. Vou tentar explicar-te da melhor maneira que sei, começando por esmiuçar cada um dos argumentos:

Os argumentos que dão foram as outras pessoas não saberem se sou homem ou mulher. Algo que eu bem sei, assim como tu. Como é que eu me ousei algum dia a questionar-me? Como vieste tu ajudar-me neste processo de autodescobrimento?

Depois, o argumento do meu lado feminista, o que é completamente inadmissível acreditar em valores e direitos iguais. Isso é sequer uma questão discutível? Não sei como pedir-te desculpa por este meu erro crasso, devia para tais pessoas submeter-me a um machismo sistémico e constante.

Outro ponto que pegaram foi o facto de ter sido (e serei sempre) bombeira voluntária. Só tenho de te pedir desculpa, pois o meu lado egoísta e egocêntrico de querer ajudar as outras pessoas é um acto tão bárbaro que não sei como fui capaz de fazer por tantos anos… não é sequer equacionável fazer voluntariado, reforçando que este não é remunerado, com obrigatoriedade de cumprir escalas de serviço exigentes e formação obrigatória em prol de alguém que precisa de ajuda? Isso é completamente desumano e insano. Claramente merecedor de uma lista de terrorismo.

Por último, argumentam o facto de ser colaboradora do dezanove.p… Que tenho sérias dúvidas que eles saibam, mas há quase uma década me dedico a ele. É demasiado irresponsável dedicar-me a uma página que se dedica a temáticas tão centrais como o direito à informação, à liberdade de impressa, ao direito das pessoas LGBTQIA+ e aos direitos iguais. Não vá isto melindrar alguém ou ferir susceptibilidades tão sensíveis, afinal de contas faz-nos falta um Salazar…

Por tudo isto e após reflexão, talvez seja mesmo falta de altruísmo da minha parte não querer que outras pessoas tenham a experiência que tive. Tal como aconselho terem sentimentos de culpa por serem quem são, que não imponham limites até porque gostam de ter alguém a pisar-vos os calos ou mesmo que olhem por cima do ombro porque afinal de contas é mais temível serem quem são do que temerem a agressão, o ódio, o crime, a intolerância das demais pessoas do mundo… é mesmo este o mundo em que vivemos?

Agora, sem sarcasmos, assinava já um acordo de que se eu tivesse de passar por tudo isto e isso de alguma forma isentasse quem pudesse vir a passar pelo mesmo. O problema é que isso não iria acontecer e por isso, a minha forma de estar na vida vai ser sempre a mesma e agora ainda com mais força: vou continuar a ser quem sou, a questionar-me sobre tudo, a não aceitar o que me querem impor, a gritar e a sair à rua, a marchar e a produzir conteúdo, a procurar conhecer mais sobre o que não sei, a conversar e a ouvir atentamente os outros, a lutar, a aprender, a querer mais, a querer melhor… e no fundo, felizmente, foi dessa forma que te apaixonaste por mim.

Por fim, quero dizer-te: obrigada. Não sonhas nem tens noção do quanto agradeço e da sorte que sei que tenho por te ter na minha vida. Por seres quem és, pelo bem que me fazes, por me amares dessa forma, pelo que me desafias, por me deixares amar-te da minha maneira, pelo que me despertas e pelo quanto me ajudas a crescer. Foste, és e serás sempre a minha escolha mais fácil: acordo todos os dias sabendo da pessoa incrível que tenho a meu lado e casar-me contigo foi a coisa mais certa que alguma vez fiz na vida.

Se isto chocar alguém, que se lembrei que não vos pedi em casamento ou não foi convosco que me casei. Sobre a nossa liberdade, que ninguém opine, nunca!

 

  • Às minhas pessoas:

A vocês, dizer-vos que assumo ser uma pessoa perigosa na vossa vida e peço desculpa pelos meus actos bárbaros de uma pessoa empática. Peço desculpa por vos estender a mão quando necessitam, por vos abraçar quando o vosso mundo parece desmoronar, por vos ouvir de forma ativa e por vos validar pelo que sentem, por me meter no vosso lugar sem pedir permissão, por vos desafiar a colocarem questões, por querer mais para a vossa vida, por procurar-vos quando necessito de um porto de abrigo e por recorrer a vocês quando o meu mundo abala.

Se a vossa decisão for querer uma terrorista na vossa vida, por favor só peço duas coisas: que me protejam quando a minha segurança está ameaçada e quando forem exercer o vosso direito de voto, não o façam contra mim e os meus valores nem votem a favor de quem está contra mim, sem que eu entenda o porquê.

 

  • Aos meus hipotéticos filhos e filhas e a ti Ari, que temo pelo vosso futuro:

Não sei que mundo vos espera, mas sei que mundo quero para vocês – quero genuinamente acreditar que o futuro será melhor do que a forma como eu, agora, o vejo.

Preciso de crer que o vosso futuro seja sem amarras, sem rótulos, sem preconceito, sem ódio… e que vocês percebam que só somos verdadeiramente livres quando praticamos essa liberdade, sem medo, sem rodeios, sem tretas. 

Prometo-vos fazer a minha parte e se isso for constar numa lista de terroristas, que assim seja. Avanço, enfrento e marcho com o meu passado cravado na minha pele e até ao tutano. Com uma esperança e garra que vem do que acredito ser o vosso futuro. E lembrem-se: coragem não é sentir medo, coragem é seguir em frente, enfrentando o que nos acorrenta, mesmo com medo.

 

  • Psicóloga:

Não sou de intrigas, mas se eu consto numa lista de terrorismo a ti (e a mim) o devo. Por tudo o que temos feito e trabalhado em conjunto, por tudo o que evoluímos, desenvolvemos, construímos e desconstruímos juntas: o meu muito obrigada!

Obrigada por seres uma profissional com valores tão bonitos, com um lado humano e empático que são verdadeiramente raros aos dias de hoje, obrigada pela tua escuta activa e comunicação eficaz, obrigada pelas questões que me lanças e os desafios que me colocas e um enorme obrigada por seres alguém que está no teu lugar certo, por te dedicares verdadeiramente à tua profissão, querendo sempre aprender, estudar e progredir mais. Tenho a certeza de que és uma pessoa e profissional incrível, que toca em todas as pessoas que tem a sorte de cruzar contigo. 

Obrigada.

 

  •  Às pessoas que constam na lista:

Assino por baixo da Clara Não quando diz que esta lista na verdade é uma lista de pessoas inspiradoras e se há pessoas que são mais conhecidas, há outras que não o sendo tanto, são sem dúvida pessoas maravilhosas com valores certos. Não tenho dúvida de que todas as pessoas destas listas são pessoas do bem e das quais adoraria poder trocar dois dedos de conversa. Tenho a certeza que iria aprender muito convosco e com sorte poder ensinar ou questionar uma coisa ou outra.

Lamento se o meu nome é de alguma forma pouco lisonjeiro para vocês. É caso para vos dizer que me sinto não ser ninguém de relevo e que chego a duvidar muitas vezes se alguém no mundo sabe que eu existo… e não só descobri que sabem, como posso ter um pouco mais de ego porque me metem no mesmo patamar que vocês, que são pessoas que eu admiro muito.

Aos que conheço e a quem não conheço prometo continuar a ser quem sou, a fazer o que faço e a tentar ao máximo acompanhar o nível de excelência que vocês praticam. Será uma honra marchar e lutar a vosso lado.

 

  • A quem se deu ao trabalho de fazer a lista e de me ter colocado nela:

Não sei como é que alguém gasta tempo, um recurso tão limitado na nossa existência, que o gasta à toa a investigar pessoas, a procurar dados e a fazer uma lista e respectivo vídeo sobre estas, dando-se ainda ao trabalho de o publicar em diferentes sítios para instigar o à violência e ao ódio. Só me resta dizer que isto é crime, e como tal, vai ser devidamente tratado como tal.

 

  • À Justiça, à Segurança Pública e à Judiciária:

Espero que entendam a gravidade do assunto e que não sejam brandos com quem pratica o crime contra pessoas só pela sua orientação sexual, identidade de género, posição política, pelo seu voluntariado, pelo que defendem e pela sua liberdade de se expressarem.

Um obrigado especial a cada uma das pessoas com quem me cruzei para apresentar uma queixa crime, pois se havia algum receio da minha parte, a verdade é que tive a sorte de me cruzar com pessoas humanas, livres de preconceito e incrédulas com o comportamento desta dita organização.

 

  • À minha pessoa:

Espero que continues a ser exactamente quem és, porque nada nem ninguém vive a tua existência. Que nunca te esqueças do quão incrível és e do que fazes, seja ou não visível, tenha impacto com outras pessoas ou apenas na tua vida. A tua jornada tem sido inacreditável e deves sempre orgulhar-te de ti, por nunca te esqueceres de onde vieste e procurares saber para onde vais, com consciência, com questionamentos, com dor e sofrimento, mas também uma alegria e uma vontade de viver e contemplar o bom que há no mundo. Só existe uma Eme, então sê-lo da melhor forma que sabes.



Com amor, purpurinas, raios de sol, arco-íris, pinguins, unicórnios, e muito amarelo,

Eme Pimentel Santos

 

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