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Celebrar o Orgulho LGBTI+ em 2020 – uma estratégia de Marketing?

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A data que se celebra é histórica. 28 de Junho de 1969, marca o início dos movimentos da luta civil em favor dos direitos das sexualidades e identidades de género que se iriam repercutir pelos EUA, Europa e um pouco por todo o mundo. Como pano de fundo temos o bar de Stonewall Inn, um bar gay em Greenwich Village, Nova Iorque, e com personagens queridas pela história, as activistas Marsha P. Johnson, Sylvia Rivera e Stormé DeLarverie, que junto de aproximadamente 400 pessoas, iriam pela primeira vez se juntar num tumulto de libertação e resistência contra a opressão e violência de pessoas homossexuais, bissexuais, transgénero, negras e feministas sentida pelas rusgas policiais diárias que se arrastariam até ao dia 2 de Julho.

Stonewall mostrava ser o momento definidor da identidade e activismo gay. Um acto de resistência com tal impacto que viria a hastear a bandeira arco-íris no ano a seguir, na primeira Marcha do Orgulho de Nova Iorque. Uma luta que ganhava força com o surgimento de dezenas de organizações políticas gay e de movimentos sociais contra as formas de discriminação e de fobia, embarcando áreas como a promoção dos Direitos Humanos, a libertação da comunidade LGBTI+, a luta contra a invisibilidade do HIV/SIDA e sua prevenção e angariação de fundos de pesquisa científica. Podemos relembrar, como exemplo, o trabalho da ACT UP e seu co-fundador em continente americano, Larry Kramer, que marcara um novo capítulo na visibilidade da homossexualidade através da luta contra a pandemia do HIV/SIDA.

A criação da Associação Gay e Lésbica Internacional (ILGA) em Inglaterra, no ano de 1978, viria a ser um, também, marco importante na coordenação de esforços internacionais na promoção dos direitos humanos na luta contra a discriminação de pessoas LGBTI+, contando hoje com cerca de 400 organizações associadas e representando um total de 90 países em todo o mundo. O agitamento de reformas legais e sociais para as pessoas LGBTI+ foi-se fazendo sentir nas últimas décadas do século XX mostrando não ser exceção em Portugal.

A liberalização das sexualidades e das identidades de género no país, em comparação com os países europeus, veio revelar-se tardia, reflexo da opressão vivida durante quase 50 anos por um regime de índole fascista e de uma mentalidade que resistira transformar-se pós-Abril de 1974

A liberalização das sexualidades e das identidades de género no país, em comparação com os países europeus, veio revelar-se tardia, reflexo da opressão vivida durante quase 50 anos por um regime de índole fascista e de uma mentalidade que resistira transformar-se pós-Abril de 1974. Porém, foi sobretudo na década de 1980 e 1990, que se assistem a passos largos na visibilidade e defesa da comunidade LGBTI+, por influência do conjunto de associações Gays e Lésbicas que surgiram após a criação da ILGA Portugal em 1996. Uma associação de carácter transnacional e com trabalho associado ao combate ao HIV/SIDA, que na construção de grupos de interesse (Grupo de Mulheres), Serviços de Apoio à Sociedade (Linha de Apoio à Homossexualidade – LAISH) e com o braço de partidos de esquerda, Grupo de Trabalho Homossexual do PSR (1991) e mais tarde com a criação do Bloco de Esquerda (1999), viriam a levar ao Parlamento a agenda política LGBT na luta contra um conservadorismo latente.

São muitas as realizações desta organização logo aquando a sua fundação. Desde a celebração das primeiras marchas em memória e solidariedade das pessoas afectadas pelo HIV/SIDA; da Celebração do Dia do Orgulho LGBTI+, com os Primeiros Arraial Pride em 1987 e 1998 e da Primeira Marcha do Orgulho LGBTI+ (2000), em Lisboa, reivindicando direitos a ser consagrados na Constituição da República. Entre os assinalados, relembramos alguns, como, a prevenção da discriminação e agressão por forma da orientação sexual ou identidade de género; do reconhecimento das famílias homossexuais à União de Facto, ao Casamento e Adopção; da Educação Sexual gratuita nas escolas de forma a dar visibilidade às questões de género e das sexualidades; do acompanhamento médico dos transexuais na mudança de sexo e alteração dos seus documentos de identificação; do direito ao aborto ao acesso à contracepção gratuita, entre tantos outros objectivos que seriam gradualmente alcançados através da luta social e da mudança política e legislativa no país.

Esta agenda política mostra a sua força através do calendário de visibilidade do movimento LGBTI+ que iniciado nos anos 1990, com os primeiro arraiais e Marcha LGBTI+, se fez estender ao resto do país. De Norte a Sul, o orgulho LGBTI+, hoje, celebra-se em cidades como Porto (2006), Coimbra (2010), Açores (2012), Braga (2013), Madeira (2016), Setúbal (2017), Vila Real (2017), Faro (2018), Bragança (2018), Viseu (2018), Aveiro (2019), Barcelos (2019) e ainda Santarém (2020) e Leiria (2020) que, apesar dos condicionalismos vividos pela pandemia, não deixaram de mostrar a sua força e vontade na organização de iniciativas solidárias que se propunham a apoiar a comunidade LGBTI+ em tempos de confinamento.

As marchas, orientadas e promovidas pela acção colectiva, entre associações, colectivos ou pessoas individuais, mostram o seu carácter político contestatário e reivindicativo na consciencialização do que falta cumprir. Usufruto do poder da democracia directa, da liberdade de expressão e de associação, as marchas são espaços de luta e de reconhecimento público que mostram o descompasso entre a realidade jurídica e a vida social que se pretende transformar. O caminho LGBTI+ não é excepção neste contexto, tornando a invisibilidade e diversidade Queer num palco de luta e de libertação identitária.

Ao longo das últimas décadas foram surgindo novas manifestações públicas que se dedicam a dar visibilidade às questões LGBTI+. Através de um carácter maioritariamente festivo estas manifestações conseguem atrair um espectro ampliado de pessoas e serviços para o seu meio ainda que não encontrando em si a contestação ou reivindicação política que se alcança nas marchas. Falamos, de eventos como os Arraiais Pride em Portugal ou a nível transnacional do EuroPride, WorldPride ou GlobalPride, estruturas compostas por dezenas de ONGs LGBTI+ e demais patrocinadores, que no investimento mediático e branding rosa que incutem às capitais onde se celebram, facilmente se confundem nos proveitos económicos associados à celebração de grandes eventos com a luta pela visibilidade da diferença dentro da comunidade LGBTI+.

É num clima de mediatismo, de comercialização e de lucro ao lado do protesto e da visibilidade da cultura gay, que nos últimos tempos se vê acender uma tensão entre as duas formas de manifestação e celebração do Orgulho.

É num clima de mediatismo, de comercialização e de lucro ao lado do protesto e da visibilidade da cultura gay, que nos últimos tempos se vê acender uma tensão entre as duas formas de manifestação e celebração do Orgulho. Entre activistas e militantes das Marchas, que sinalizam questões holísticas da sociedade e, quem escolhe os Arraiais enquanto símbolo de uma manifestação alternativa para a celebração do movimento LGBTI+. Criticam-se as técnicas de comercialização e de promoção dos símbolos LGBTI+ que os Arraiais promovem, mostrando a ambiguidade de um evento de intervenção cívica se deixar corromper pelo consumo de massas cor-de-rosa, não se debruçando sobre as questões de opressão e discriminação existentes dentro e fora da comunidade, de uma comunidade que se vê alienar também pela sua condição social, económica, racial e profissional neste mercado rosa assumidamente gay, masculino e cisgénero.

Critica-se o Pinkwashing exposto nos Prides, por cada vez mais as suas organizações se apoiarem em empresas privadas e identidades bancárias na realização dos eventos, sem, no entanto, possuírem políticas ativas e integradoras dos trabalhadores LGBTI+ no seu seio laboral ou por mostrarem interesse pontual em apoiar a luta LGBTI+, sobretudo aquando a celebração destes eventos. Critica-se a usurpação da imagem LGBTI+, como disfarce de um lucro e marketing discriminatório, que no momento em desconstruir estereótipos de género os multiplica no seu marketing e merchandising (uma homossexualidade de classe média, branca, cisgénero e masculina), no momento de alertar para a consciência política despolitiza o passado histórico e a luta e emancipação dos que por nós morreram a lutar.

Um pouco o que acontece também em Israel, Estado que mostra apropriar-se da causa LGBTI+, querendo propagandear uma imagem de sociedade democrática e livre de opressões, atraindo visibilidade turística LGBTI+ ao país, mas, no entanto, continua com políticas de morte ao povo palestiniano encobrindo uma violência e discriminação sobe a bandeira arco-íris.

O mercado cor-de-rosa em Portugal, apesar de nas últimas décadas se ter expressado de uma forma mais visível, muito por força da Variações – Associação de Comércio e Turismo de Portugal e de um conjunto de Circuitos Gays entre Lisboa e Porto, em dar visibilidade a espaços de diversão e lazer (bares, discotecas, saunas, hotéis, etc.), não tem uma expressão acentuada, ficando concentrado nas duas maiores zonas metropolitanas do país.

Portugal, pela dimensão geográfica e populacional que possui, mostra também ser um caso único na Europa pelo número de manifestações públicas LGBTI+

Portugal, pela dimensão geográfica e populacional que possui, mostra também ser um caso único na Europa pelo número de manifestações públicas LGBTI+ que possui, entre as quais as marchas, providas de um activismo de luta que se alia a outros grupos socialmente discriminados, pela libertação racial, política ou sexual.

Existe também quem aponte a descredibilização das marchas por falta de envolvimento cívico e militância política nos tempos contemporâneos, ainda assim o país mostra querer acompanhar a mudança na luta pela visibilidade da população lésbica, gay, bissexual, transexual e intersexo a par do que se pratica lá fora. Bom exemplo do que acontece no país em tempos de impossibilidade de reunião e manifestação pública é nos oferecido pela Organização da Marcha do Orgulho de Lisboa (MOL), que embora decidindo não realizar a sua 20ª edição de forma presencial por razões de segurança, mostra o seu alcance meta-celebrativo e cria uma iniciativa de ajuda a pessoas LGBTI+ que foram mais afectadas pelas consequências do vírus no país. Através de iniciativas de crowdfunding, reach out e de voluntariado, assim como de recursos próprios angariados em anos anteriores, a MOL colabora com movimentos que prestam assistência a pessoas mais desfavorecidas, como são as pessoas migrantes, refugiadas, trabalhadoras do sexo e ciganas.

Numa altura em que os direitos das pessoas LGBTI+ ficam expostos às razões de uma crise que desprotege os mais desfavorecidos, que impede a celebração política ou festiva das Marchas e Arraiais no país, é importante questionar a mobilização que cada uma das partes acciona em momentos como este. É importante pensar em que moldes queremos que a imagem LGBTI+ seja propagada e de que forma nos podemos fazer representados, afinal, a busca pela diversidade e pelo potencial humano é uma busca conjunta e por diferentes partes.

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

 

Webgrafia: BDS Movement [30 de maio de 2020], dezanove [28 de Maio de 2020], Stonewall [28 de Maio de 2020], The Guardian [28 de Maio de 2020]

Bibliografia: "28 Discursos sobre Direitos LGBT em Portugal", INDEX ebooks, 2016.