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Chemsex e violência sexual contra homens

Ângelo Fernandes

Chemsex é uma prática comum para alguns homens que têm sexo com homens (HSH).

 

Para certos participantes é uma forma de aceder à sua sexualidade plena ou de ter contactos sexualizados que de outro modo poderiam não ter acesso. Em alguns casos podemos referir sentimentos fortes de vergonha e culpa, homofobia internalizada, entre outros obstáculos, que no contexto do chemsex desaparecem e deixam estes homens a sentir-se livres para explorar e ter relações sexuais prazerosas. Para outros, a decisão pode passar por uma questão de curiosidade ou de procurar por novas experiências.

O que é chemsex afinal? Pode ser definido como o consumo de substâncias sexualizadas (nomeadamente GHB/GBL, metanfetamina e mefedrona) com recurso a apps de hook up/engate (como o Grindr) e que acontece entre HSH. Esta é uma definição, mas há quem considere outras possibilidades. Há quem alargue o conceito de HSH para pessoas não-binárias, genderfluid, queer. Ou seja, pessoas que de alguma forma possam sentir-se estigmatizadas devido à orientação sexual ou relativamente à sua identidade e expressão de género. E há também quem associe o consumo de outras substâncias como ketamina, cocaína e poppers.

 

A violência sexual será um risco a considerar?

Quando se fala sobre chemsex há um conjunto de advertências associadas. As principais prendem-se com a exposição e transmissão de ISTs (VIH, hepatite C, entre outras) e com a dependência e comportamentos aditivos. Secundariamente, podem-se encontrar alusões a alucinações visuais ou auditivas, surtos psicóticos, níveis altos de ansiedade e sintomatologia depressiva/humor deprimido pós sessões, mas são menos frequentes. O foco dos riscos associados incide principalmente nas ISTs e nas dependências.

A violência sexual em contexto de chemsex não existe nas advertências. Ou pelo menos não na grande maioria de materiais, estudos e artigos científicos. E precisa de estar. Parece haver uma omissão e camuflagem desta realidade, como se não fosse real a sua existência. Quanto muito, há uma alusão ou outra para a eventualidade de haver “sexo não consentido” ou “impossibilidade de dar consentimento”. Por isso, é preciso iniciar um debate sem rodeios de que é uma possibilidade haver casos de violência sexual em contexto de chemsex.

Por isso, é preciso iniciar um debate sem rodeios de que é uma possibilidade haver casos de violência sexual em contexto de chemsex.

Num inquérito realizado pelo Gay Star News (GSN) em 2017, é referido que um em cada dez participantes partilha ter sido abusado sexualmente em sessões de chemsex. Pessoalmente, creio que este é um número baixo e que não representa a realidade dos casos reais. Basta considerar que apenas 16% dos homens vítimas de violência sexual reconhece ter sido vítima (Widom & Morris, 1997) ou que apenas 3,9% dos homens denuncia este tipo de crime (Badenoch, 2015).

Se trouxermos para a conversa o estigma e as ideias estereotipadas sobre homossexualidade e HSH, como a moralização de determinadas práticas sexuais, a ocultação destes casos de abuso e silenciamento dos homens vitimados pode ser maior do que se considera.

No mesmo inquérito, 53% dos participantes diz tomar mais riscos em contexto de chemsex, como não usar preservativo, e 56% dos praticantes fá-lo com desconhecidos. Se adicionarmos que há substâncias psicoativas cujos efeitos passam pela desinibição, euforia, excitação sexual, alteração da percepção, lapso ou perda de memória podemos concluir que há todo um risco para casos de violência sexual. Especialmente quando trazemos o consentimento para a conversa.

 

Consentimento e participação voluntária nas sessões

Tal como a violência sexual, não é fácil definir consentimento, podendo haver noções díspares de pessoa para pessoa. No entanto, há algumas ideias chave que gostaria de mencionar:

  • É um acordo voluntário, consciente e informado para o envolvimento numa atividade sexual específica (ie: uma pessoa pode consentir sexo oral e anal, mas não outras práticas como fisting ou sexo desprotegido).
  • Não pode ser forçado, coagido ou pressionado.
  • Pode ser cessado a qualquer momento. E desde o momento em que é revogado, qualquer contacto sexualizado por parte de outro ou outros é considerado violência sexual.
  • É fundamental para qualquer experiência sexual, aplicando-se inclusive em relações de namoro/intimidade ou casamento.
  • Silêncio, ausência de “não” ou falta de resistência activa não indica consentimento.

 

É importante realçar a necessidade de haver comunicação entre as partes. O consentimento pode ser dado por palavras ou ações, desde que essas palavras ou ações não-verbais transmitam uma permissão clara sobre a disponibilidade para se envolver em determinada atividade sexual. Partindo do princípio que, quando duas ou mais pessoas se encontram para terem relações sexuais estão interessadas em dar e receber prazer, a segurança e bem-estar das mesmas deve ser uma preocupação comum.

O consentimento pode ser dado por palavras ou ações, desde que essas palavras ou ações não-verbais transmitam uma permissão clara sobre a disponibilidade para se envolver em determinada atividade sexual.

Na divulgação de um evento organizado pela 56 Dean Street, reconhecia-se que «os homens gay começam a falar sobre as suas experiências sobre consentimento em contexto de chemsex, mas muitos definem isso como "contratempos" ou "risco ocupacional".» A interiorização e aceitação de que os casos de abuso podem acontecer como parte do universo de chemsex, contribui para o silenciamento das vítimas e também para a sua responsabilização (victim blaming) sobre os actos cometidos contra a sua pessoa.

Como estas sessões são de participação voluntária, pode haver quem ache que o consentimento aplica-se para qualquer prática e até ao fim da sessão. Sendo que não é necessariamente assim. A 56 Dean Street avança também que os participantes «podem não se lembrar exatamente do que aconteceu ou sentirem-se confusos sobre o que significa consentimento em contexto de chemsex, e sentem-se extremamente relutantes em relatar essas experiências.»

Um dos participantes do inquérito do GSN refere ainda que «se alguém consumiu demais e suas inibições são reduzidas, nada disso é realmente consentido, mas nada disso é contra a vontade de alguém. Acho que realmente faz parte da situação, combina com este contexto... Algumas pessoas dão consentimento, mas quero dizer: é realmente consentimento quando alguém está literalmente prestes a desmaiar?»

 

Reflexões finais

O consentimento só por si não é fácil de definir. Quando trabalho com jovens, vários dizem que o “não” é apenas um passo para alcançar o “sim”. Que por vezes é preciso forçar o sim. Os primeiros “nãos”, não contam. Entre outros exemplos preocupantes.

O consentimento só por si não é fácil de definir. Quando trabalho com jovens, vários dizem que o “não” é apenas um passo para alcançar o “sim”. Que por vezes é preciso forçar o sim. Os primeiros “nãos”, não contam. Entre outros exemplos preocupantes.

Para algumas pessoas pode não ser fácil compreender o que é consentimento num contexto de intimidade de casal. Quando adicionamos o chemsex, no qual o consumo de substâncias altera o estado do participante, desinibe, provoca euforia e excitação sexual, torna-se ainda mais complexo.

Por isso é necessário que haja um debate sobre o que é violência sexual e consentimento. Que ideias e noções tem cada participante sobre estes conceitos? Haverá incompatibilidades? E sim, que riscos pode acarretar? Valerá a pena iniciar um envolvimento sexual? São algumas das questões que podemos refletir.

 

Não podemos, no entanto, continuar a camuflar o risco de violência sexual nestas circunstâncias. Também não se trata de diabolizar estas práticas, nem apelar à proibição das mesmas. Trata-se de educar e sensibilizar os participantes para uma participação informada e consciente. Ou seja, sabemos que há homens que vão procurar chemsex, é um facto. O que importa é que se faça uma abordagem correcta de redução de riscos sem juízos de valor. Para tal, é necessário que os homens tenham conhecimento do que é violência sexual e consentimento, e que nestes contextos pode ser difícil distinguir os limites de cada participante, havendo um risco de acontecerem casos de abuso.

 

Direitos de quem pratica chemsex

Se o leitor pratica chemsex, com um ou mais parceiros, ou tem outras experiências semelhantes, é importante que saiba quais são os seus direitos:

  • Tem direito a cessar, a qualquer momento, o contacto sexual, independentemente do motivo: desconforto, falta de interesse, perda da excitação ou outra razão. Não precisa de justificar.
  • Tem direito a sair do contexto em segurança.
  • Tem direito a procurar um serviço de apoio e ser recebido sem juízos de valor.

 

Apoio e serviços disponíveis

Se foi vítima de violência sexual pode contar com o apoio psicológico da associação Quebrar o Silêncio. É a primeira e única organização portuguesa que presta apoio especializado para homens e rapazes vítimas de violência sexual. Os serviços de apoio são gratuitos, anónimos e confidenciais.

Mesmo que não tenha memória do abuso ou a certeza do que aconteceu, pode contactar a associação. É natural que não consiga recordar ou que esteja a experienciar sentimentos de culpa. O importante é ter acompanhamento para compreender o que está a sentir e ultrapassar o impacto traumático.

 

Para questões relativas às ISTs pode contactar o Checkpoint LX. Serviço para HSH para o rastreio rápido, anónimo, confidencial e gratuito do VIH e outras IST, onde encontrará também aconselhamento e referenciação aos cuidados de saúde.

 

Relativamente ao consumo de substâncias pode contactar a Kosmicare. Associação que trabalha na cultura de diversão noturna, no consumo de álcool e substâncias. Tem serviços de Drug Checking, informações e consultas dirigidas à integração de experiências difíceis relacionadas com o consumo de substâncias psicoativas. Acesso gratuito, anónimo e confidencial.

 

Ângelo Fernandes

Fundador da associação Quebrar o Silêncio. Trabalha no apoio a homens e rapazes vítimas de violência sexual