Como uma castanha definiu o limite do humor
Numa conversa acesa com um colega de trabalho, percebi que há pessoas que consideram o direito de rir mais importante do que o direito de um grupo existir em paz.
Qual o limite da comédia? Ou podemos mesmo colocar um limite na comédia?
Tem havido muito debate a volta da comédia e da política de cancelamento. Também sobre “Accountability” ou Responsabilidade em português, o facto ou a condição de ser responsável.
A discussão com o meu colega surgiu quando ele comentou que achou graça a publicação da Control, na altura do S. Martinho, a imagem de uma castanha assada, com a casca entreaberta, e com a frase “O pior é quando a descascas e vês que tem minhoca”. Obviamente que salta a vista uma ofensa as pessoas trans. Sempre achei o marketing da Control muito brejeiro, machista e apenas piadas fáceis. Não tem nada de sofisticado em fazer piadas sexuais, mas é a imagem da marca, e os marketers saberão o que fazem. A Control apagou a publicação, e lançou um comunicado, “O limite do humor é um limbo de sensibilidades. O post da castanha teve graça para muitos, mas ofendeu outros tantos e esse é obviamente o nosso limite”. Então o limite do humor é quando ferimos sensibilidades?
A marca ainda acrescentou “Agradecemos por isso a todas. Aos que sorriram, elogiaram, mas mais ainda aos que nos chamaram à razão. Seguimos junt@s”. Sinto que ficamos aqui num limbo também, está tudo bem para quem se riu, mas também concordamos com quem se ofendeu. Em que ficamos então?
Não é responsabilidade da marca educar mentes, a sua única responsabilidade é vender o seu produto. Apesar disso, o comunicado foi para agradar a gregos e a troianos, simpatizamos com quem se riu, mas entendemos quem se ofendeu. Não poderia ter sido evitada a situação, se houvesse por parte da marca, consciência que vão passar o tal limite do humor que referem no comunicado?
Gostava de dizer que isto apenas se resume a marketing das marcas, porém tem se verificado alguns comediantes, bastante conhecidos e admirados, como Dave Chappelle ou Ricky Gervais, que tem feito piadas transfóbicas e outras que visam toda a comunidade LGBTQIA+. Acabam por ser criticados pela mesma, e usam o argumento, a boomer, que estão a ser cancelados.
Dave Chappelle é bastante controverso, talvez por isso tão popular. No seu espetáculo “The Dreamer”, o alvo foi mais uma vez as pessoas trans, em que numa das piadas diz se for sentenciado, vai informar o tribunal que se identifica como mulher para puder ir para uma prisão feminina… Chappelle tem sido amplamente criticado, mas continua a fazer sucesso. Foi cancelado, não é?
Ricky Gervais também tem usado as pessoas trans como tema nos seus espectáculos. Admito que consumi o seu conteúdo e gostava, mas depois de “Super Nature”, caiu na minha consideração. Gervais refere que adora estas novas mulheres, estas com barbas e pilas… Ainda no mesmo espectáculo diz que apoia os direitos trans, e que são direitos humanos, mas pede estas mulheres para perderem a pila. Criticado sim, cancelado? Não, tem um novo espectáculo e inclusive passou aqui por Portugal no mês passado, no MEO Arena.
Acho que o que muitos acreditam ser a política de cancelamento, é na verdade, ser submetido a escrutínio e ser responsabilizado pelo que fez ou disse. O que acontece muitas vezes é que as pessoas não gostam de se responsabilizar pelos seus actos. Não gostam de ouvir críticas e não estão abertas a ouvir outra perspectiva ou a aprender como fazer melhor da próxima vez. De referir que há de facto pessoas que por vezes cometem erros sem se aperceberem porque a transfobia, a homofobia, o machismo e o racismo estão tão enraizados em nós e na sociedade que só percebem que algo está errado no que fizeram quando alguém o indica. E depois há o oposto, há quem use a liberdade de expressão ou sua interpretação do que é a liberdade de expressão para puder dizer tudo o que lhes vai na cabeça. Temos visto inúmeros casos, e incluindo na Assembleia da República, o que degrada a nossa democracia. O famoso “Ah! Não se pode dizer nada hoje em dia!”, eu contraponho com “Hoje em dia diz-se até demais.”. Há uma porta aberta pelos chamados moderados em que temos direito de dizer TUDO. Podemos denegrir um povo na Assembleia da República, podemos ofender uma deputada invisual… Acho já são tantos os casos que a minha memória já não acompanha.
Bom, de volta a discussão com o meu colega, tentei explicar, sem sucesso, (lá está um exemplo de uma pessoa que não quer ouvir), que são estas coisas pequenas que normalizam discursos violentos em relações a estas comunidades, neste caso, a comunidade trans.
A comédia, algo que usamos para rir e descomprimir, pode de facto ser usada também para normalizar o preconceito. Alguém lança uma piada homofóbica, toda a gente ri-se. O comediante percebe que pode continuar a fazê-lo porque teve sucesso, e nós ao rir-nos, estamos a dizer ao mundo que não há problema em fazer troça de uma pessoa queer, uma micro-agressão que parece inofensiva, mas é o ponto de partida para o discurso de ódio e violência.
Sendo as pessoas trans uma das comunidades mais violentadas e um bode expiatório como vemos nos EUA com Trump, devemos ter consciência e tacto como abordamos os seus temas.
Em Portugal, já vários humoristas afirmaram que não pode haver limites no humor, e que o proibir é perigoso. Sou sincera, e acho que serei um pouco dura no que irei dizer, mas a opinião deles pouco me importa desde que decidiram ir ao Vaticano reunir com o Papa, o mesmo Papa que disse num seminário que já havia bichas a mais. A opinião que me importa é a das pessoas alvo das piadas.
As pessoas trans gostaram da publicação da Control? Gostaram das piadas de Chappelle ou de Gervais?
Para mim, o direito a rir não é mais importante do que ofender uma comunidade inteira. A nossa liberdade acaba quando começa a do outro. E mais uma vez, a importância da empatia. A falta dela, também se revê na comédia.
Por fim deixo uma recomendação de um stand-up: “Nanette” de Hannah Gadsby de 2018, mas continua bastante actual.
Sara Correia