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Conundrum: História da Minha Mudança de Sexo de Jan Morris

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Não há outra pessoa no mundo que eu preferisse ser em lugar de mim própria.” (p.212)

Traduzindo do inglês, o título da obra, Conundrum, significa “enigma” ou “problema difícil de lidar”. Revelando-nos as contrariedades vividas por Jan Morris, prestigiada jornalista, historiadora e escritora de viagens galesa, esta peça autobiográfica revisita quatro décadas da vida da autora sendo-nos partilhados os seus desejos e anseios na busca pela identidade feminina e alcance da sua autodeterminação de género e sexual. Principiamos a leitura com a descoberta, em tenra idade, do seu enigma, do desejo em habitar o sexo oposto: “Tinha três anos, talvez quatro, quando me dei conta de que nascera no corpo errado, de que deveria ter rapariga. Lembro-me bem desse momento, pois trata-se da memória mais precoce da minha vida.” (p.19). 

Estando diante de uma obra datada, tendo sido publicada em 1974, Conundrum, mais do que uma história de autodescoberta mostra ser uma peça pioneira na literatura LGBTQI+, sendo a primeira autobiografia trans a ser publicada e a levantar inquietações em torno da transgressão dos corpos sexuais normativos e dos tradicionais papeis de género. Numa época em que os direitos trans estavam longe de ser reconhecidos, a obra desvela algumas das narrativas, estereótipos e preconceitos em torno das identidades trans e como, quatro décadas depois, num mundo onde as questões de género e sexualidade se viram transformar radicalmente, ainda são tão incómodas e urgentes as demandas pelos direitos de autodeterminação de género e sexual. 

Antes demais, deixo o alerta para o facto deste livro não ser um ensaio que esmiúça as questões trans mas, como referi acima, revisita as várias passagens de vida da autora. Desta forma, o livro demarca três fases da sua vida: primeiramente, enquanto James Morris, oficial do exército inglês, jornalista do The Times, popularizado pela pioneira expedição britânica ao Evareste em 1953 e suas incontáveis incursões pela Europa e América do Norte, de seguida, o seu caminho de transição de sexo nos anos 1960 e sua relação conjugal e familiar com Elizabeth e, por último, já na década de 1970, dois anos antes da publicação do livro, a cirurgia de resignação sexual a que se submetera em Casablanca, Marrocos. Uma descrição de tal forma realista e assombrosa, esta última, que leva o/a leitor(a) mais sensível a arrepiar-se, corpo e alma, sob o padecimento que as cirurgias de redesignação sexual podiam representar na época.

Evitando o divórcio forçado, considerando que o casamento entre pessoas do mesmo género seria reconhecido no Reino Unido apenas em 2013 (Inglaterra e País de Gales), Jean recorre aquela clínica de forma a alcançar a sua emancipação física, emocional e social, partilhando: “Às vezes parece-me que venci uma pequena batalha em nome da liberdade, ao alertar a minha persona num boulevard de Marrocos.” (p.216) É a partir desta data, 1972, que Jean assume o seu nome feminino e enfrenta o espaço público de acordo com a nova identidade. 

É neste ponto da sua vida que nos apercebemos da especial controvérsia sobre o entendimento de género enquanto construto cultural e/ou paradigma biológico essencialista, da transgressão e/ou assimilação das identidades trans dos entendimentos hierárquicos de feminilidade e masculinidade, assim como da revelação da subordinação feminina de Jean naquele novo mundo de cortesia machista: “E portanto, tratada todos os dias da vida enquanto ser inferior, involuntariamente, mês após mês, aceitei esse estatuto. Descobri que ainda hoje os homens preferem que as mulheres sejam menos informadas, menos capazes, menos faladoras e menos egocêntricas, está bem de ver, do que eles próprios o são; por isso, de forma geral, fiz-lhes a vontade.” (p.195)

A autora, revela-nos também, como a intervenção cirúrgica e tratamento hormonal a que se submetera fizera com que perdesse determinadas “qualidades” masculinas.  Conta que, após a remoção dos seus órgãos sexuais e ao tornar-se “mais mulher” tornara-se mais reservada, mais passiva, deixando-se “conduzir mais facilmente”. Tal crença, sobre o “estado neurótico da mulher”, mostrava a influência Freudiana no seu pensamento sobre a concepção do falo e da inferioridade feminina face ao homem, tal como, a meu ver, do seu mais profundo desejo em descartar uma forma de violência de género que a invisibilizara por outra que a reconhecia e até lhe mostrara certa deferência. Não esqueçamos que esta é uma obra dos anos 1970, que muitas das reivindicações Queer feministas em torno da desconstrução do binómio de género, da autodeterminação sexual e da performatividade de género estavam ainda por se expandir. 

Esta é uma obra que nos faz repensar o género e a forma como lhe obedecemos ou transgredimos socialmente. Uma obra que nos conta sobre o desejo de uma vida livre, do sucesso de um amor ilimitado, da resistência e obstáculos criados por paradigmas sociais que aprisionam as possibilidades do ser humano em escolher a sua própria identidade e se expressar de forma livre. Nesta obra, Jean Morris, fala-nos de um conflito típico da humanidade em geral, o conflito da autodeterminação e libertação social.



Editor: Tinta da China

Ano: 2020

224 páginas, formato 20.6 x 13.6 cm

ISBN 978-989-671-545-8

PVP: 15,21€

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.