Corpos dissidentes sob Fogo: ler Calibã e a Bruxa para compreender o nosso tempo
Há livros que se limitam a explicar o passado. E há outros que rasgam o presente e o iluminam como uma lanterna na noite escura. Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, é um destes casos. Publicado pela primeira vez em 2004, e cuidadosamente editado em português, pela Orfeu Negro, com a força de quem já andava de mão em mão há anos, este ensaio não é apenas uma leitura histórica — é uma convocatória para se entender as dinâmicas sociais desde a Idade Média até aos dias de hoje.
Um mapa da violência fundadora do capitalismo e, sobretudo, uma homenagem aos corpos insubmissos que nunca se deixaram capturar, sobretudo as classes camponesas e trabalhadoras. É neste tempo da meia-idade entre a queda do Império Romano e a Idade Moderna que se gizam as primeiras lutas, sobretudo as relações “entre a cidade e o campo”. “Muitos burgueses eram antigos servos que se tinham mudado ou haviam fugido para a cidade em busca de uma vida melhor e que, ao mesmo tempo que exerciam as suas artes, continuaram a trabalhar na terra” (pág.75).
Silvia Federici escreve desde o ponto de vista das vencidas. Atravessa séculos de arquivo com a urgência de quem sabe que a história nunca é neutra. Queimar mulheres, expropriar terras comunais, transformar o cuidado e a reprodução em trabalho não pago, mercantilizar o corpo, racializar a exploração — tudo isto não foi um desvio, mas o próprio alicerce do mundo moderno.
A misoginia que hoje se propaga nas redes sociais — e que tem dominado as conversas públicas — teve a sua primeira grande legitimação nesse período. A Peste Negra, que dizimou entre 30 a 40 por cento da população europeia, abriu um momento inesperado de libertação popular que viria a ser violentamente reprimida. Como escreve Federici, “a legalização da violência criou um clima de misoginia intensa que degradou todas as mulheres, independentemente da sua classe social” (p. 87).
Para tentar controlar essa nova realidade social, surgem os bordéis públicos municipais, institucionalizados sobretudo em cidades como Pádua e Florença — uma tentativa de regular, vigiar e disciplinar o corpo feminino sob o olhar masculino e estatal.
Esta repressão sistemática e institucionalizada não é um episódio isolado, mas parte de uma longa estratégia de domesticação da vida e da reprodução. Calibã e a Bruxa mostra-nos, com rigor e indignação, que a violência não é um efeito colateral do capitalismo, mas o seu alicerce original. E se quisermos imaginar futuros verdadeiramente livres, talvez o primeiro passo seja escutarmos essas vozes soterradas nas cinzas da história — vozes que ainda hoje, como as de Cláudia Simões ou de tantas outras, continuam a arder.
Federici estrutura Calibã e a Bruxa em cinco capítulos densos, historicamente fundamentados e atravessados por uma narrativa clara, onde cada parte é uma chave para compreender como se forjou o mundo moderno — à custa de violência, expropriação e domesticação dos corpos.
O primeiro capítulo, O Mundo Precisa de um Abanão, mergulha nos movimentos sociais e nas crises políticas que marcaram a Europa medieval. Aqui, Federici mostra como as lutas populares, longe de serem excepções marginais, colocaram em xeque o poder feudal e ameaçaram os alicerces da ordem estabelecida. É neste contexto de instabilidade que se começa a preparar a viragem — não como evolução inevitável, mas como contra-ofensiva das elites burgueses em afirmação.
No segundo capítulo, A Acumulação de Mão-de-Obra e a Degradação das Mulheres: Construindo a "Diferença" na Transição para o Capitalismo, a autora mostra como a transição económica exigiu a redefinição dos papéis sociais e a invenção da "diferença" entre os corpos — sobretudo através da subalternização das mulheres. A reprodução deixou de ser um acto colectivo e comunitário para se tornar num espaço privatizado, vigiado e moldado ao serviço do capital. As mulheres passam a submeter-se ao trabalho doméstico sem serem pagas definindo um forma de acumulação de capital em dívida até aos dias de hoje.
Segue-se O Grande Calibã: A Luta Contra o Corpo Rebelde, onde Federici desmantela a visão romântica do humanismo renascentista e centra a análise nos corpos que foram domesticados, torturados, vigiados — e também nos que resistiram. Calibã, figura de A Tempestade de Shakespeare, torna-se o símbolo das massas colonizadas e exploradas, dos corpos indisciplinados que se recusam a ter um papel de mão-de-obra dócil.
O quarto capítulo, A Grande Caça às Bruxas na Europa, é um dos momentos mais arrepiantes do livro. Federici detalha com precisão como o terror institucional se abateu sobre milhares de mulheres, sob acusação de feitiçaria. O Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), manual de perseguição e tortura, tornou-se um instrumento jurídico e ideológico de controlo social. A caça às bruxas não foi um delírio isolado, mas uma campanha sistemática de destruição do saber feminino e comunitário.
Por fim, no quinto capítulo, Colonização e Cristianização, a autora traça o paralelo entre a repressão na Europa e a expansão colonial. O processo de conquista e evangelização de povos fora da Europa não só replicou a violência da transição capitalista, como também a radicalizou, racializando a exploração e convertendo a missionação num braço do domínio económico.
Mas o livro não é só denúncia. É também uma genealogia da esperança. Ao recuperar formas de vida alternativas, práticas de cuidado partilhado, redes de apoio mútuo, insurreições esquecidas, Calibã e a Bruxa aponta para outra coisa: o futuro está nas mãos dos que persistem em imaginar o comum, mesmo em tempos de escuridão. E isso é profundamente político.
Em Portugal, a leitura deste livro ganha um peso particular. A expansão colonial, iniciada bem antes da modernidade industrial, foi não só laboratório como motor de um capitalismo nascente. Os saberes medicinais indígenas, as redes de solidariedade africanas, a resistência nas roças e nas plantações, tudo isso faz parte do que Calibã e a Bruxa ajuda a reconhecer: que a acumulação primitiva não é um capítulo fechado, mas uma ferida ainda aberta. Do Bairro da Jamaica às lutas das trabalhadoras da limpeza, da violência policial sofrida por Cláudia Simões ao assédio institucional das mães negras nas periferias urbanas, Federici dá-nos ferramentas para compreender que a violência fundadora do sistema capitalista continua a actualizar-se.
Num momento em que a extrema-direita volta a ganhar terreno, em que o neoliberalismo captura até os nossos afectos, e em que se tenta reescrever o passado com uma nostalgia tóxica, Silvia Federici oferece-nos uma arma teórica e afetiva. Uma lembrança incandescente de que houve (e há) sempre quem resista.
Tradução: Pedro Morais
1.ª edição: 2020
Páginas: 392
EAN 9789898868794
André Soares