"Cresci numa geração em que não havia perpectiva de vida"
“Do passado para o futuro”, a tertúlia organizada pelo Grupo de Reflexão e Intervenção Trans marcou o fim de um mês de actividades pela visibilidade trans. A tertúlia realizou-se a 31 de Março de forma a assinalar o Mês da Visibilidade Trans, com transmissão em directo nas páginas do Facebook da ILGA Portugal e do Centro LGBTI.
Esta tertúlia, que tinha como objectivo perceber as conquistas verificadas ao nível da comunidade trans e o que se pretende no futuro, contou com a moderação de Dani Bento, membro do GRIT e da Direcção da ILGA Portugal; Jó Bernardo, mulher trans, antiga trabalhadora do sexo e livreira reformada; e Ary Zara, activista e co-criador do projecto T Guys Cuddle Too.
Quando questionados sobre o panorama geral do activismo trans, Jó Bernardo considera que a evolução tem sido extraordinária, dando como exemplo os avanços no enquadramento legal para as pessoas trans. Porém afirma igualmente que também se verificaram retrocessos. Segundo Jó Bernardo apesar de actualmente as pessoas trans terem uma maior visibilidade, afirmando que actualmente as pessoas trans já existem, mas mal, a verdade é que essa visibilidade fez com que se tornassem alvo de grande agressividade por parte de certas pessoas. Por fim, Jó defende que antes as pessoas trans não tinham reconhecimento, mas também não eram alvo desta agressividade e discriminação. Na mesma questão, Ary Zara sentiu que no ano de 2020 houve um crescimento sobre a questão trans, concordando com Jó Bernardo quanto ao grande avanço que se verificou na legislação a este nível e afirmando que hoje se fala mais na questão trans, mas fala-se mal.
Outro ponto de destaque na tertúlia foi o facto de Jó Bernardo ter referido que antes as pessoas trans não tinham perspectivas de vida, aspecto relacionado com o facto da sua esperança média de vida ser muito curta, não atingindo as idades de agora. Jó deu inclusive o seu exemplo (tem 55 anos e há uns anos atrás, grande parte das pessoas trans não conseguia atingir estas idades), afirmando "cresci numa geração em que não havia perpectiva de vida”. Em complemento à questão do envelhecimento das pessoas trans, Jó Bernardo afirma “Não havia uma perspectiva de envelhecimento para as pessoas trans, porque em geral morríamos aos 40. […] O que é que fazemos ao envelhecimento das pessoas trans? O que é que está a ser feito a nível das organizações […] para ajudar na questão do envelhecimento da população LGBTIQ?”.
Abordou-se igualmente a questão da inserção das pessoas trans no mercado de trabalho. Segundo Jó Bernardo em Portugal verifica-se uma grande lacuna no que diz respeito aos mecanismos de promoção de acesso ao mercado de trabalho. Jó aponta também a precariedade desta população, afirmando “este confinamento veio mostrar que a grande parte das pessoas trans não tem assistência, apoio, mecanismos... e surpreende-me que as associações não se tenham coordenado […] falta de trabalho social concreto. Bolsas de alimentação social? Onde estão?”. Embora reconheça que tenham sido organizados pequenos projectos em Lisboa e Porto, tal não se verificou a nível nacional. Dando como exemplo que também existem jovens trans a precisar de apoio no interior do país.
Numa parte dedicada às pessoas que servem de modelos de referência e admiração Jó Bernardo citou Maria José Campos, Natália Correia e Helena Roseta. Já o Ary Zara considera inspiradoras pessoas como Lila Fadista, Alexa do Clube Safo, Alice Cunha, Carmo Ge Pereira, as Drags do Trumps e Isaac que o acompanha no projecto T Guys Cuddle Too.
Foi ainda aflorada a questão das redes sociais, constatando-se que a este nível existe uma polaridade: se por um lado há mais comentários ofensivos, por outro lado, também há uma maior facilidade em reportar esses casos.
Por fim, Dani Bento afirmou que ainda há muito por fazer em termos de visibilidade trans, pois há boa visibilidade, mas também há má visibilidade. Jó Bernardo lembrou que as pessoas trans têm de ser selectivas quanto a convites que são feitos pela comunicação social. Ary Zara complementa: “Temos de ser nós a criar os nossos conteúdos e controlar o que é dito. É preciso rebentar a bolha. E aliarmo-nos a figuras públicas que nos ajudem a passar a mensagem”, concluindo com a afirmação: “Parem de dizer que nascemos num corpo errado, não há um corpo errado num sistema que não está certo. […] Somos trans e com orgulho. […] Este sistema não faz nada por nós. […] O meu corpo é este e a minha identidade é esta. Aguentem-se!”
Podes ver toda a tertúlia aqui.
Tatiana Portela