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É o Verão a subir termómetros, é a suspensão do trabalho a diluir inquietações, as férias a autorizarem mais tempo-livre, a ameaça da COVID-19 a diminuir e a descontrair vigilâncias. Tirando partido das horas extra de luz, os corpos parecem reencontrar o gosto e a disponibilidade para a descontração e para o prazer físico – à nossa volta, e de todos os quadrantes, desperta agora em força a energia libidinal que os dias de frio mantiveram latente.
 
A gozar de novos contextos e de novos estímulos, o nível de controlo do nosso comportamento vai cedendo gradualmente, deixando que fluamos com maior espontaneidade pelas ordenações do desejo. À medida que um sentimento de liberdade nos desinibe de certas resistências moralistas, somos abertos de forma mais licenciosa ao apetite de aventuras transgressivas. É a época alta do sexo, e a adrenalina de fruí-lo em qualquer lado torna-se-nos irresistivelmente afrodisíaca – cruising numa praia, num mato, numa casa-de-banho pública, num parque de estacionamento, com um, dois, ou mais parceiros desconhecidos. Da ambivalência da zona de conforto à ambivalência do prazer transgressivo, até onde deixarias que o desejo te levasse?... Até onde permites que ele te leve?
 
 
1: Cruising: a arte da transgressão
1998. O parque Will Rogers, situado no número 9650 da Sunset Boulevard, em Beverly Hills, nunca até então conhecera qualquer polémica. Estava-se em Abril, e as notícias davam voz à informação do tenente Edward T. Kreins a respeito de «um grupo de quatro pessoas de identidade incógnita que [haviam encontrado] George Michael (sozinho na casa de banho) num acto de luxúria». O que poderia ter terminado com a carreira de qualquer outra estrela pop pareceu revitalizar a do famoso cantor. A postura desafiante que apresentou ao negar qualquer pedido de desculpa pelas ações incorridas, fizeram com que muitos activistas o tomassem por ícone da resistência gay: recusando submeter-se à definição heteronormativa de que a intimidade sexual é sinónimo de amor e de fidelidade, naturalizou o prazer dos encontros sexuais anónimos como parte da nossa cultura, como parte do que fazemos, como parte de quem somos. A sua prisão em 1998 marcou o momento em que o cruising entrou na consciência colectiva, seguindo-se em 2007 a prisão do senador republicano Larry Craig, nas casas de banho de um aeroporto. Embora os incidentes tenham sido tratados como «crimes», conseguiram também abrir o debate sobre a maneira puritana de ver o sexo gay. O sensacionalismo dos tablóides serviu para familiarizar-nos com o ato em si mesmo, trazendo detalhes íntimos e apontamentos culturais que antes só os envolvidos conheciam. 
 
Ao perseguir esta prática, o cruising foi visibilizado, e na tentativa de o eliminarem, acabaram por publicitá-lo ainda mais. O cruising foi resgatado das ruas e levado ao primeiro plano da atenção pública. Por cá, há três anos, cerca de duas décadas após a prisão de George Michael, foi noticiado pelo dezanove.pt a crítica que o vereador da Câmara de Braga, Altino Bessa, integrante da coligação PSD/CDS, dirigiu à existência de cruising num conhecido espaço bracarense [vide https://dezanove.pt/vereador-do-cds-quer-acabar-com-local-1256121], tratando-o como um “local de encontros/prostituição de homossexuais”, que lhe “dá mau aspecto”. A despeito das queixas, o Picoto não perdeu o seu status como lugar de cruising. Tentar eliminá-lo não só confirma que existe (e onde) como também o segredo e o medo que dele nascem levam à cimentação de uma identidade.
 
 
2: Cruising: uma gíria, um código, uma atitude, uma identidade  
Para o historiador Timothy Blanning, a palavra ter-se-á originado como gíria da comunidade gay no início dos anos 60, fazendo referência ao acto de homens gays, que se reconheçam entre si, procurarem parceiros (cruisers) para encontros sexuais clandestinos em lugares públicos – os chamados espaços de cruising – sem atrair a atenção de outras pessoas. É um modelo alternativo e puramente gay de encontrar parceiros, que não encontra réplica em nenhum modelo estabelecido pela norma heterossexual. É praticado entre HSH (homens que fazem sexo com homens) de forma gratuita, consensual e anónima, em áreas como jardins, matas, praias, urinóis, parques de estacionamento, entre outras, às quais acorrem para obtenção imediata de prazer sexual descomprometido. 
 
Derivando do equivalente holandês «kruisen» – passível de traduzir-se como «cruzar» ou «cruzar-se», podendo igualmente significar «alimentar» ou «provocar o cruzamento de plantas e animais» – o termo cruising começou por constituir um mecanismo sociolinguístico de proteção para a comunidade gay. Apesar de actualmente se perceber maior abertura e aceitação nas sociedades ocidentais, sabe-se que a socialização da comunidade gay se manteve fortemente condicionada pelos cânones da moralidade, pela importância atribuída à família – heterossexual e patriarcal –, pelos papéis de género e pelas orientações sexuais hegemónicas, sendo consequentemente relegada à clandestinidade. Conhecer e estabelecer vínculos com outras pessoas, independentemente da modalidade relacional que se pretendesse firmar, tornava-se apenas possível em espaços que fossem escassamente povoados. 
 
Com o avanço dos primeiros movimentos pelos direitos LGBTQIA+, especialmente nas décadas de 60 e 70, espaços mais visíveis começaram a surgir, oferecendo a homens gays/HSH, um lugar seguro para encontrar parceiros sexuais e se afiliarem socialmente à comunidade. Muitos bares gays tornaram-se então bares de cruising, adaptando ao seu ambiente elementos originais de espaços de cruising públicos, como glory holes e darkrooms. Com o tempo, este movimento levou à abertura de negócios cada vez mais específicos, estabelecendo uma política “men only” a saunas, clubes de sexo, cinemas pornográficos, onde os homens poderiam ir tanto para desfrutarem das instalações como para fazerem/presenciarem sexo. 
 
Entretanto, nas décadas de 80 e 90, a crise sanitária do VIH/sida obrigou muitos a voltarem ao armário ou ao isolamento, alterando durante as seguintes décadas o panorama do cruising e do sexo anónimo. Por outro lado, um olhar atento sobre a história LGBTQIA+ mostra-nos que a escalada de operações policiais violentas, com o pretexto de impedir a propagação do VIH/sida e promover o sexo seguro, foi gradualmente desencorajando a prática de cruising. 
 
Mais tarde, com a proliferação em todo o mundo do uso de dispositivos móveis com geolocalização, de páginas e de aplicações como o Grindr, o Scruff, o Squirt.org e o Adam4Adam, o comportamento cultural do cruising foi redefinido, fazendo com que deixasse de ser algo “necessário” e se convertesse meramente numa fantasia sexual. Alguns puristas são remissos em classificar o uso destes meios como cruising, defendendo que esta prática ocorre essencialmente num instante – um instante que captura uma oportunidade fugaz não passível de premeditação. A manifestação e interpretação de sinais, princípios básicos do cruising, são desenhados para servir uma comunicação espontânea e à simples largada do olhar. Diferentemente do que acontece aos comandos do mundo digital, o cruising nutre-se de encontros inesperados que nos obrigam a mover, a actuar ou interactuar sem guião predefinido, implicando um certo nível de participação ativa para se formar parte dele. Já que o cruising é um acto nascido do secretismo e da ofuscação, dos movimentos físicos que são orquestrados e cronometrados com cuidado, requer indivíduos que procurem lugares que permanecem, em maior ou menos grau, ocultos. 
 
esta prática ocorre essencialmente num instante – um instante que captura uma oportunidade fugaz não passível de premeditação.
 
Ainda assim, é inegável que a tecnologia torna o cruising mais seguro, mais rápido, menos aleatório, mais planificado e executado com precisão. Uma pesquisa simples no Google, por instantes, dá-nos rápido acesso a links como: 
 

ou https://www.gays-cruising.com/pt, que nos permitem pré-selecionar possíveis pontos de cruising, e escolher melhor o onde, quando e o como da sua prática. 
  
 
3: Cruising: onde, quando, como... e quem?
Todos os sítios podem, em potência, ser espaços de encontros gays/HSH – será a intenção que nos move, e a forma como a comunicamos, que o definirá. Ainda assim, alguns são favorecidos pelos cruisers, na medida em que se percebem mais calmos, ou até mesmo abandonados, longe da vista dos transeuntes – de que casas de banho públicas não muito ocupadas, parques à noite, ou praias de nudismo são exemplo. 
 
Em Portugal são conhecidos vários espaços, no número dos quais se contam: o pinhal do Camarido, a norte de Moledo, a Praia das Pedrinhas, no concelho de Esposende, a Praia da Estela, no concelho da Póvoa de Varzim, a Santa Marta das Cortiças, a Volvo, e os WC do Braga Shopping, em Braga, o Shopping Cidade do Porto, a estação de comboios de São Bento, o Norte Shopping, os WC em frente às piscinas na floresta de Amarante, os WC e o parque de estacionamento da área de serviço de Estarreja, o Alto de Alpedrinha, pela EN 18, entre Castelo Branco e Fundão, a rodoviária de Leiria, a zona industrial de Vila Franca de Xira, o parque de estacionamento do Estácio Nacional/Jamor, a Praia 19, na Costa da Caparica, a Praia do Malhão, o pinhal de Cabanas de Tavira, o Miradouro do Campanário e o Parque da Lombada, na Madeira, o Monte Carneiro, no arquipélago dos Açores. (Psst, hey: conheces mais locais de cruising? Sente-te livre para partilhar nos comentários as tuas próprias referências).
 
Variando em função da percepção e do jogo de significados que se atribuiu à sua prática, o cruising apresenta padrões na forma como cruisers comunicam e interagem, e a despeito de ser uma experiência derradeiramente pessoal, algumas regras básicas comuns prevalecem: 
 
1) Não falar muito (o objectivo não é propriamente estabelecer amizades); 
 
2) Conhecer o contexto (explora bem o espaço em que te encontres, estando atendo a câmaras de vigilância e a formas de escape rápido na eventualidade de algo acontecer); 
 
3) Segurança (algumas áreas são mais seguras do que outras. É sempre melhor verificares os quadros de aviso nos sites de cruising antes de te dirigires a um local, para te certificares de que não houve relatos recentes de ataques ou crimes. Certifica-te de ir sóbrio, já que se estiveres sob a influência de álcool ou de drogas, é menos provável que detectes sinais de perigo. Mantém próximos de ti todos os seus itens pessoais, como telemóvel, carteira e chaves, ou deixa-os em casa, se possível. É aconselhável informares alguém de confiança acerca dos teus planos, e manteres o seu contacto pronto em caso de necessidade. Não aceites bebidas ou alimentos que não estejam devidamente selados. Nunca partilhes informações desnecessárias sobre ti que te possam pôr em risco. Se fores vítima de algum ataque ou ofensa, poderás e deverás denunciar o caso a uma qualquer associação LGBTQIA+ que te orientará no processo); 
 
4) Observar as pessoas (fica atento a expressões subtis, como um contacto visual mais intenso ou um leve acenar de cabeça, geralmente indicadores de que têm interesse em ti: aprende os rituais e como fazer parte desta comunidade); 
 
5) Aceitar o ‘não’ (o consentimento é chave: saber o que estás disposto ou não a fazer, e cumpri-lo de forma coerente, é crucial. De igual forma, se alguém não estiver interessado em ti, finta a frustração e segue avante); 
 
6) Satisfação mútua (é apenas justo que ambas as partes envolvidas saiam satisfeitas); 
 
7) Confiar nos teus instintos (se sentires algo de errado, não te demores: é preferível um escape do que te sentires mal por fazer algo evitável); 
 
8) Conhece os teus direitos (sexo em público não é sempre ilegal: certifica-te apenas de que não és observado por pessoas que possam sentir-se ofendidas com o que vêm. A polícia só tende a visitar locais de cruising se alguém relatar uma queixa, ou se houverem relatos de ataque/ofensa: nenhum agente ou guarda-florestal tem o direito de te parar ou de te revistar só por estares num local de cruising); 
 
9) Discrição (muitos apreciam ação ao vivo, mas nem todos: se te pedirem para te afastares, respeita o seu desejo); 
 
10) Monopolização do espaço (deixa que outras pessoas usufruam também do espaço); 
 
11) Mantém o espaço limpo (recolhe preservativos, lenços e tudo o que possa chamar a atenção para esse lugar: isto poderá evitar a monitorização da área, o que dificultaria a prossecução do cruising aí).
 
Segundo estudos, a maioria dos homens envolvida na prática de cruising não se identifica como homossexual ou bissexual, opondo-se até a estas designações. Muitos não fizeram o seu coming in/out, e encaram estes encontros como desvios temporários do seu perfil de comportamento; outros estão em relacionamentos heterossexuais, inclusive com filhos, e não dispõem de meios alternativos válidos para terem relações sexuais com homens, já que não querem correr o risco de serem vistos em locais ou aplicações gays/HSH, ou de serem identificados como homossexuais (para eles próprios, e/ou para os demais). A experiência é invariavelmente silenciada, mesmo junto de amigos próximos, por culpa, vergonha, e medo à rejeição, ou à atribuição de rótulos como “promíscuo” e “puta”. 
 
Será esta prática o resultado de uma cultura no armário, ou uma outra maneira de manter a integridade de uma subcultura que é exclusivamente nossa? 
 
 
4: Cruising como prática de resistência: "On the outside looking in"?
Independentemente de ser vivido como escape, como única via possível para satisfação de um desejo afectivo-sexual, como fetish, fantasia romântica, ou compulsão, o cruising não deixa de ser uma postura desafiante face a um ideal patriarcal e machista que vem conformando grande parte da nossa existência. Esta é uma das ideias defendidas pelo escritor Alex Espinoza na sua obra «Cruising: Historia íntima de un pasatiempo radical». Além de pontuar uma libertação sexual, o cruising é visto como uma recusa directa das regras e preceitos que definem a educação a que fomos sujeitos, nomeadamente ao insurgir-se contra certos símbolos fundamentais da heteronormatividade, como o matrimónio e a monogamia. 
 
Por outro lado, ao permitir às pessoas estabelecerem as condições do seu próprio desejo e assegurarem mútua satisfação, pode dizer-se do cruising que é uma prática baseada na igualdade. O cruising ajuda a subverter e as desestabilizar as várias acções opressoras do poder social – como o sexismo, o racismo, o classismo, a xenofobia, o etarismo e a discriminação estética –, funcionando como um método pelo qual o corpo não-branco, de nível sócio-económico baixo, depreciado pela sua orientação sexual ou identidade de género não normativa, pela sua senioridade ou exclusão dos padrões de estética vigentes, resiste a noções prescritas de subjectividade, desafiando dogmas e apropriações culturais, visibilizando a sua existência. Quando a comunidade gay começou a adoptar comportamentos normativos, o cruising tornou-se subversivo: quem não encontra satisfação afectivo-sexual no ambiente gay (onde imperam certas normas sobre o corpo e sobre a entrega sexual), poderá obtê-la através do cruising, onde não existem filtros nem padrões como esses. Com efeito, o poder dos locais de cruising radica na estrutura inerente de um ecossistema que permite ao mesmo tempo que os corpos dissidentes procurem e/ou recusem, olhem e/ou sejam olhados, desejem e/ou sejam desejados, sem penalizações, dispêndio de dinheiro, ou explicações. 
 
Acima de tudo, e para todos, o cruising é um itinerário da nossa própria humanidade. Pode ser percebido, mais além do desejo físico, como a necessidade que todos temos – particularmente os grupos marginalizados: a de conexão e pertença, a de estar com alguém como quem nos identifiquemos positivamente, a de sentirmos algo mais do que a nós mesmos. É por isso que nos fala directamente da nossa própria solidão, e faz-nos saber quando estamos e quando não estamos sós. Nestes termos, enforma uma prática que ajuda a comunidade gay a viver e a celebrar-se em ambientes onde a sua existência é negada ou sancionada.
 
Entre a necessidade de tempos idos, e a subversão dos modelos que se foram estandardizando até à actualidade, o cruising continua a reivindicar-se como prática histórica. Está, em potência, por todo o lado – à tua espera, atrás de ti, em silêncio, numa furtiva mas penetrante largada de olhar, num baloiçar discreto do pescoço, no batuque de um pé por baixo de uma porta. 
 

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Repara, por exemplo, neste homem. Imagina que te cruzas com ele num café do Porto. Após uma troca de olhares cúmplice, ele sinaliza o interesse de que o sigas até à casa de banho. Da ambivalência da zona de conforto à ambivalência do prazer transgressivo, até onde deixarias que o desejo te levasse?... Até onde permites que ele te leve? Segui-lo-ias?
 
 
Carlos Marinho
Psicólogo clínico, criador artístico queer, e activista pela promoção dos direitos LGBTQI+. O seu primeiro contributo para o trabalho de activismo deu-se em 2013, como co-organizador e porta-voz da primeira Marcha pelos Direitos LGBT de Braga. De então a esta parte, tem prestado à comunidade um núcleo de serviços inclusivos, dedicados à optimização do crescimento pessoal e colectivo, desde consultas de acompanhamento terapêutico a projectos de intervenção social alicerçados no cruzamento entre os domínios da arte e da psicologia.
 

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