“Descobri que tinha VIH aos 18 anos”
Descobriu aos 18 anos que vivia com o VIH. Hoje tem 22 anos e quis partilhar com os leitores do dezanove.pt a sua história. Pedro (vamos chamar-lhe assim, já que este jovem pretende ver a sua identidade preservada) anseia dar voz à sua luta contra o preconceito, contra o estigma e pela prevenção das várias infecções sexualmente transmissíveis (IST) junto da população LGBT+.
O vírus existe diariamente, mas nem sempre as reportagens, artigos ou entrevistas captam tanta atenção como hoje: o Dia Mundial da Luta Contra a SIDA.
dezanove: Podes falar-nos um pouco sobre ti? Qual a tua idade, localidade, estudos ou profissão?
Pedro: Tenho 22 anos e vivo no Funchal. Estudei Marketing e estou agora a planear lançar-me no ensino superior, espero eu que no Continente, provavelmente Lisboa. Para isso vou trabalhar durante os próximos anos de maneira a conseguir pagar os meus estudos.
Em que circunstâncias descobriste que tinhas VIH?
Tinha 18 anos. Ou seja, em 2011. Além da minha vida familiar estar um caos e dos meus pais estarem a separar-se, estava há seis meses numa relação com um rapaz. Acho que foi das relações mais felizes que tive na minha vida, mas ao mesmo tempo era também uma relação muito instável e conflituosa, diria que quase doentia. Mas gostávamos muito um do outro. Ele fez anos na última semana de Outubro e festejámos com uma saída à noite numa sexta-feira. No dia a seguir acordei doente e, a partir daí, tive a minha aventura hospitalar durante o mês de Novembro.
Que sintomas apresentavas? Podes descrever esse episódio?
Os sintomas não acontecem com todas as pessoas, mas felizmente aconteceram comigo. Inicialmente tive os sintomas de uma simples gripe e automediquei-me com antigripais, mas a febre persistiu e a fadiga aumentou. Três dias depois fui às urgências do Hospital Dr. Nélio Mendonça e diagnosticaram-me, com algumas dúvidas, uma amigdalite. Fiz novas análises de sangue dias depois, sentia-me pior - com o corpo cada vez mais cansado e até precisava de ajuda da minha mãe para me alimentar - e acabaram por me diagnosticar e medicar para uma mononucleose infecciosa, mais conhecida pela doença do beijinho. Depois de começar a tomar o antibiótico para a mononucleose, comecei a ter erupção cutânea que se foi alastrando por todo o corpo e a minha cara inchou e avermelhou. Nestes mesmos dias comecei a ter muitos suores noturnos, dores de cabeça, diarreia, vómitos e a fadiga tornou-se tão extrema que precisava de alguém a me ajudar para conseguir andar, que geralmente era a minha mãe. Dado a gravidade da situação, fui a uma clínica privada ao que me foi dito que podia ter uma alergia ao antibiótico e fui reencaminhado novamente para as urgências do Hospital Dr. Nélio Mendonça. Nessa noite fiquei a soro, fiz várias análises e dormi numa maca, nas urgências do Hospital. De manhã fui reencaminhado para outro hospital, o Hospital dos Marmeleiros, onde comecei o internamento. Ao fim ao cabo, esta foi a reação do meu corpo ao vírus. É uma fase conhecida como infecção aguda, requer acompanhamento médico e é temporária.
Após a notícia de saberes que vivias com o VIH, o que te custou mais?
Eu soube da notícia ao quarto dia de internamento. Depois da médica me contar, fiquei sozinho no quarto do hospital, chorei um pouco, mas não interiorizei logo e fiquei tranquilo. Entretanto tive uma conversa informal com a psicóloga da Unidade de Infecto Contagiosas do Hospital e lembro-me que estava bastante preocupado com a reacção da minha mãe e do meu namorado. A minha mãe visitava-me todos os dias e naquele dia, umas horas depois, mal ela abriu a porta desatei a chorar e não demorei muito até lhe dizer "Mãe, tenho SIDA" - se fosse hoje, não diria que tenho SIDA porque, na verdade, não a tenho... mas acho que ela não entenderia o que seria esta coisa de ter VIH. A par deste episódio, houve outras duas coisas que me custaram bastante: ter alta e ter que voltar a ser internado dias depois e o facto do meu namorado ter reagido muito diferente de mim, o que causou alguns atritos. Acho que foi devido a tudo isto e ao contexto que comecei a desenvolver a depressão que me acompanhou durante alguns meses.
Que apoios foram determinantes para melhorares o teu estado de ânimo na altura?
Nessa altura a minha melhor amiga tinha começado a estudar em Lisboa e por isso não estava cá comigo, embora continuasse obviamente a me apoiar. O relacionamento em que estava também me fez afastar de muitas pessoas. Portanto, estive um pouco desamparado. Valeu-me a minha mãe que esteve sempre para mim, uma amiga do secundário e duas amizades que recuperei após o internamento e que me ajudaram a voltar a ter alguma da minha vida social. Mas a depressão e o facto do relacionamento em que estava ter terminado duma forma abrupta, conflituosa e violenta fizeram-me isolar e, consequentemente, dificultaram a minha recuperação emocional e psicológica. Foi uma altura bastante confusa para mim... costumo dizer que pensei que ia morrer de tristeza, de vazio.
A associação rede ex aequo também teve um papel muito importante nesta fase, foi no Fórum da rede ex aequo que comecei a partilhar toda a minha experiência e história como seropositivo, e a ter o apoio e as palavras de incentivo de algumas pessoas. Senti a necessidade de partilhar o que sentia e de tentar abalar consciências para o VIH. Ao mesmo tempo, acredito que também seria apoio para outras pessoas que tivessem dúvidas. Aquelas palavras confortaram-me porque não só não me julgaram como também me fizeram crer que eu era capaz de ultrapassar tudo aquilo. E fui.
Na tua opinião, o que se deve fazer e jamais se deve fazer ao lidar com estas situações?
É difícil manter a sanidade mental quando recebemos a notícia de um diagnóstico de VIH, por diversas razões. Entre elas a relação do VIH/SIDA ao medo e ao pânico, por vezes até à morte, e à de que a pessoa é altamente infecciosa e contagiosa, de que a vida acaba ali mesmo. É como ser reduzido a um vírus. As campanhas de medo feitas pelo Estado e pelas próprias associações relacionadas com o VIH/SIDA nos últimos anos não ajudaram, em nada, a vida das pessoas que vivem com VIH. É que, actualmente, a vida de alguém VIH+ é igual à de alguém que não tem o vírus e a esperança média de vida é igual ou semelhante.
O que acaba por ser mais importante na tua opinião?
É importante ignorar todo este medo e não agir por impulso. No meu caso, por exemplo, estava tão em pânico que, na altura, perdi o controlo das pessoas a quem contei que tinha VIH, e o resultado disso é que actualmente sofro por vezes alguns ataques à minha privacidade e dignidade. Outra coisa importante é tirarmos o tempo necessário para absorver toda a situação, contar aos familiares e às pessoas próximas só quando acharmos que estamos prontos e se necessário consultar um profissional de psicologia. E claro, sempre que o diagnóstico for VIH+, começar os tratamentos o mais breve possível para que o vírus não ganhe resistências.
Que cuidados e práticas adoptaste desde então?
A utilização do preservativo e a tomada dos antirretrovirais diariamente que me mantêm a carga viral indetetável. De resto, por opção minha, decidi ter hábitos alimentares mais saudáveis que, novamente, é também o que toda a gente deveria fazer.
Se alguém tiver um amigo que lhe conte que é VIH+ ou que esteja em caso de infecção aguda, o que se deve fazer?
Acho que quando alguém nos conta tal coisa, é preciso pormo-nos no lugar dessa pessoa e pensarmos aquilo que gostaríamos de ouvir nessa situação e aquilo que não gostaríamos. Há simples perguntas que acabam por vitimizar, culpabilizar e estigmatizar ainda mais a pessoa, que infelizmente até são as perguntas que mais frequentemente surgem, muitas vezes preconceituosas e intrusivas, tais como: "Quem é que te pegou isso?", "Mas como é que foste apanhar isso?", "Há quanto tempo tens SIDA?", "Mas porque é que não usaste preservativo?", "Eu também não vou ficar com isso, pois não?", "E isso pega-se pela saliva?", entre outras. Perguntas desnecessárias e que, a seu tempo, serão respondidas conforme a pessoa se ache confortável ao falar sobre essas situações. Quem tem que tomar a iniciativa de falar sobre isso é quem passou por isso, não quem tem a curiosidade... e pode até nem querer falar sobre isso porque é irrelevante.
Por norma, o mais importante nisto é não bombardear com perguntas e, principalmente, perguntar se a pessoa já está a fazer os tratamentos, assegurar que ela não está sozinha e que pode contar connosco e com o nosso apoio. Dependendo do estado de saúde mental da pessoa, aconselhar uma consulta de psicologia ou uma ida a uma associação de apoio a pessoas com VIH, e até oferecer-se a ir com ela. E é importante corresponder à confiança que a pessoa nos depositou e não contar sobre isso a ninguém... se a pessoa contou, é que confiou e se ela quiser que a sua serologia se torne pública tem que ser uma decisão dela. Até porque andar a espalhar a serologia de outras pessoas, principalmente com o objectivo de violar a dignidade da pessoa, é crime punível por lei.
No que respeita ao acompanhamento e informação especializada (profissionais de saúde, sistema nacional de saúde, sites, locais, associações, etc.) que observações tens a fazer?
Sempre fui muito bem tratado nos hospitais do Funchal, desde o internamento às consultas periódicas, desde a médica à psicóloga e enfermeiros, e tenho a dizer que em circunstância alguma fui discriminado por ser homossexual e/ou seropositivo. Muito embora tenha tido a experiência de violação do sigilo médico sobre a minha serologia por parte de uma das médicas, que o divulgou a uma conhecida do meu pai. Mesmo assim a unidade de Infecto Contagiosas do Hospital dos Marmeleiros, e a criação do Hospital de Dia da unidade, foram boas práticas implementadas para que os tratamentos para o VIH/SIDA (e outras doenças incluídas na unidade) sejam tratadas.
Contudo pergunto-me se o sistema de saúde, pelo menos cá do Funchal, está bem preparado para diagnosticar casos de infecção aguda por VIH: primeiro diagnosticaram-me amigdalite, segundo mononucleose infeciosa, depois alergia ao antibiótico para a mononucleose e em vésperas de ser internado ainda puseram em hipótese ter alergia a comida turca ou a gatos - o verdadeiro diagnóstico não poderia ter sido mais breve em vez de ter estado entre urgências e casa durante duas semanas? Outra coisa a apontar é o facto de várias vezes ter ficado sem antirretrovirais por falta de stock - leia-se falta de pagamento às farmacêuticas por parte do Governo - na farmácia do Hospital Dr. Nélio Mendonça, pondo obviamente em risco a minha saúde e a de outras pessoas e possibilitando resistências aos antirretrovirais. Esta é uma situação bastante frequente no Funchal e de forma a contorná-la até costumam dar comprimidos em avulso em vez de comprimidos para 30 dias (que é o que devia acontecer de acordo com a anterior lei). Isto não acontece só no Funchal e já houve outros casos em Portugal Continental denunciados a associações activistas pelos tratamentos.
Entretanto ocorreram alterações recentes à lei…
A lei actual, um despacho de 20 de Novembro que vinha a ser reivindicado há algum tempo, refere que as pessoas têm direito a ter acesso a medicação para 90 dias, em vez dos 30 dias do despacho anterior. Isto vai permitir que mais pessoas adiram aos tratamentos, principalmente as que por razões financeiras ou de deslocação acabavam por desistir dos tratamentos.
A realidade madeirense é diferente da do resto do país?
A realidade nacional é um pouco diferente da regional. E nem falo do Governo Regional porque acho que não vale a pena... até porque não existe nenhum Centro de Aconselhamento e Detecção Precoce do VIH na Madeira, projecto que pertence ao Programa Nacional para a Infecção VIH/SIDA, talvez dispensado nas Ilhas devido a serem Regiões Autónomas. A Madeira sofre de uma coisa que é a insularidade, que muitas vezes não permite a acção de associações na Madeira e que limita a divulgação de informação, como por exemplo sobre VIH/SIDA, ou até mesmo a inexistência de unidades móveis de teste rápido que é importante que vão aos centros urbanos, escolas e universidade. Existem no Funchal a Fundação Portuguesa a Comunidade Contra a Sida e a Abraço, mas na minha opinião faz falta campanhas de sensibilização e comunicação sobre o VIH/SIDA e outras IDST's, levando essa informação à população.
Ao longo destes quatro anos como foi viver com o VIH? Como é o teu dia-a-dia? Como é a tua relação em casa, com a família e com amigos?
Viver com VIH é fácil, com o preconceito é que não. Apenas tenho idas de seis a oito meses ao hospital para análises e uma ida à farmácia uma vez por mês (que agora passará a ser de três em três meses)... foi apenas um acrescento à minha rotina. E aliás, acho que uma ida ao hospital para fazer análises é o que toda a gente devia fazer, é assim que diagnósticos precoces acontecem e evitam o pior. O meu dia-a-dia é normal, apenas tento adaptar a minha rotina à hora em que tomo a medicação, para fazer uma refeição sempre a essa hora.
Quanto à minha família, sabem de tudo mas é quase como se não soubessem, apenas falo mais abertamente sobre o assunto com a minha mãe.
Conseguiste continuar os estudos ou arranjar trabalho?
O mais complicado foi voltar à vida normal. Os meus pais separaram-se e então eu e a minha mãe formámos uma empresa... eu não estava nada preparado para aquilo mas acabei por arriscar.
A par disso, ainda estava a recuperar emocional e psicologicamente, mas incentivado pela minha psicóloga decidi voltar aos estudos oito meses depois de ter estado internado, dado que ainda não tinha conseguido concluir o secundário por diversas razões. E assim foi, lancei-me num curso profissional e conclui-o com sucesso e distinção. Para mim foi uma vitória e fiquei super orgulhoso de mim. Mas foi bastante complicado integrar-me e isolei-me um pouco, e foi um período um pouco incerto e emocionalmente conturbado. Só comecei a integrar-me quando começaram as praxes, os testes e quando houve uma mudança de lugares dentro da sala de aula. As pessoas a quem eu me juntei também acabaram por me ajudar, voluntaria ou involuntariamente. Quando houve rumores de que eu gostava de rapazes e de que "tinha SIDA", houve pessoas que mesmo eu não falando abertamente sobre o assunto ficaram do meu lado e não se afastaram de mim.
Fala-nos da tua experiência de querer passar a mensagem e do teu voluntariado.
Actualmente, e dado que já passaram 4 anos após a infecção, estou a tentar falar mais abertamente sobre o assunto com as pessoas ao meu redor e a ter um papel mais activista, tanto na luta contra o VIH/SIDA como na luta contra o estigma e o preconceito a pessoas que vivam com VIH. Na concretização desta missão ter-me tornado voluntário da rede ex aequo está a ajudar bastante, que embora não me tivesse tornado voluntário para fazer activismo no âmbito do VIH/SIDA, acabou por ter também essa função ao me permitir ter voz activa em relação ao assunto e chegar a jovens LGBTI.
E o que toca a relacionamentos? Conseguiste continuar ou iniciar relações?
Também voltei a ter uma relação e até foi uma relação serodiscordante. Durou um ano e alguns meses mas acho que não eramos compatíveis e então ficamo-nos por ali. Depois disso tenho tido dificuldades em ter relações não só sexuais mas também relações amorosas. Sinto que o medo e o estigma começaram a apoderar-se de mim, principalmente quando decido contar à outra pessoa que tenho VIH e o medo invade-me de uma forma descomunal porque já tive algumas experiências desagradáveis. Devido a essas experiências, tenho medo que se repitam e acabo por levar isso para as relações sociais e por generalizar essa discriminação às pessoas que passam pela minha vida.
Hoje, quatro anos depois, que mensagem queres deixar às pessoas que nos lêem?
O ponto principal: fala sobre VIH. Se já somos oprimidos e discriminados pela sociedade por sermos LGBTI+, principalmente através do heterossexismo, ao não falarmos sobre IDST estamos a colocarmo-nos como vulneráveis. E o meu apelo não é só para as pessoas nem é só para os homens, é também para as mulheres e para as associações e projectos LGBTI+. Se não sabes do que falar, informa-te junto das associações e projectos que abordam esta temática, tais como o GAT, o CheckpointLX ou a SER+, todos com muita informação na internet. E sejas de que género fores, gostes de quem gostes, se vais ter sexo, casual ou não, fala sobre o VIH e sobre os comportamentos de risco que o teu ou a tua parceiro teve. Se não há preservativo, não vás muito além e não pises o risco. Exige a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) na Europa. E se já és mãe ou se és pai, fala sobre isso com as tuas filhas ou com os teus filhos.
Assumir de vez, também, que o VIH não tem cara, não tem aparência, não tem género, não tem orientação sexual, não tem condição social, não tem qualquer rótulo. O VIH pode chegar a ti, independentemente do estilo de vida que tiveres. Também é importante ter a noção que o problema da pandemia do VIH não são as pessoas que têm VIH e que fazem os tratamentos, são as pessoas que têm VIH e não sabem - e é por isso que é tão importante fazer o teste regularmente, inserir isso na rotina da saúde de cada um. E isto acontece porque as pessoas que fazem tratamentos têm uma carga viral indetectável, o que significa que a possibilidade de infecção é baixa (4%) e no sexo oral é quase nula - mas numa pessoa que não conhece a sua serologia e não está em tratamentos, tem evidentemente uma carga viral alta e por isso a possibilidade de infecção aumenta. É preciso finalmente chegarmos também à conclusão que a serofobia é tão prejudicial para quem é VIH+ como também para quem não é, no sentido de que estigmatizar as pessoas que vivem com VIH é também permitir que a desinformação continue e que outras pessoas fiquem mais vulneráveis por se basearem em mitos e preconceitos em relação ao vírus.
Legendas escolhidas pelo entrevistado:
A imagem 2 e 5 são as campanhas de medo e estigmatizantes feitas por associações e projectos sobre VIH/SIDA. Uma coloca a pessoa VIH+ como um monstro. Outra vai de acordo com o preconceito de que as pessoas que vivem com VIH+ foram infectadas devido à promiscuidade e ao número de parceiros.
Entrevista de Paulo Monteiro