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Desistir não é um verbo a conjugar

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O invisível não é reconhecido a olho nu. Houve um tempo em que armas eram somente um desejo. A batalha contra o inimigo invisível estava perdida. Estamos nos anos 90. O espelho não reconhece o teu corpo. As roupas caem das molas dos teus braços. Definhas. Vai correr tudo bem. Digo-te. Vai correr tudo bem. Existem poucas armas. A certeza é somente um poema. Mas a batalha continua. Está um frasco de álcool pousado na bancada da cozinha. Olho-te. Sinto-me sujo. Dizes. Sinto-me sujo. As nossas lágrimas dançam juntas em silêncio. Estou estragado. Dizes. Estou estragado. Um papel branco pousa sobre a mesa. 

 

Quero dizer-te que isto não é uma sentença de morte. Quero dizer-te que isto não termina aqui. Quero dizer-te que isto não termina assim. Quero proteger-te. Quero salvar-te. Quero salvar esses teus braços magros e frágeis. Já não vejo o sangue nas tuas veias. O meu corpo. Dizes. Tenho marcas no meu corpo. Sobre o teu corpo esguio, foram pintados sucessivos vulcões que te arranham a pele. Estou estragado. Dizes. Ninguém vai amar um corpo estragado. Olho-te. Nenhum anjo nos vem cumprimentar. Sou apenas eu e tu. Não te permito adormecer. Não permito adormecer para sempre. Desistir não é um verbo a conjugar. 

Passaram três semanas desde o resultado das análises. Não te abandono. Sou a tua cama. Sou o teu sofá. A tua mesa. O teu colo. Sou as tuas pernas. Sou o balde onde vomitas. Passaram três semanas desde o resultado das análises. Não é tempo de limpar as armas. O medo endurece-me o corpo. Caminho até que as minhas pernas sejam pedras. Vejo batas brancas. São corredores. São macas. São tubos de ensaio. São papéis. São muitos papéis. Arranco todos pontos de interrogação de todas as janelas, de todos os hospitais. Tenho a boca seca. As palavras parecem esgotar-se. Mas desistir não é um verbo a conjugar. Passaram 10 anos desde que o primeiro corpo perdeu a batalha. Venceu o inimigo invisível. Tu não vais perder. 

A noite caiu. Eu estou acordado. Existe um esquema. Uma combinação de medicamentos. São 20 comprimidos. São 30 comprimidos. Vejo-te as náuseas. Estou cansado. Dizes. Como é que tu queres que eu tome todos estes comprimidos, logo de manhã, em jejum? Dizes. Os meus braços seguram o teu corpo tonto e mareado. Nenhum anjo nos vem cumprimentar. Sou apenas eu e tu. Não temo abraçar-te. Não temo amar-te. Vejo o teu corpo enrolado em mantas. Vejo o teu corpo fraco adormecido. És um bebé pequenino enrolado em mantas. És a vida. És a morte. Mas não te permito morrer. Consigo ouvir o sangue nas minhas veias. Levanto-me. Quero tirar-te isso. Quero arrancar-te isso. Quero abrir o teu corpo. Quero abrir as tuas veias e procurá-lo. Quero matá-lo ainda que seja invisível. Como é que se mata um vírus? Com coragem. Não aceito que a tua vida veja a sua condenação nesse papel de análises.

Lembro-me do amor. Lembro-me de conjugarmos esse verbo. Lembro-me de conjugarmos esse verbo todas as noites. Lembro-me de conjugarmos esse verbo de todas as maneiras. Lembro-me do calor da tua pele dentro de mim. Lembro-me do sabor da tua carme. Lembro-me da massa de corpos. Não sei o nome dele. Não sei se tu o conheces. Rimos. O teu corpo rasga o ar, em movimentos que te aquecem a carne. Aquecem a tua carne. A minha carne. A carne dos corpos que riem connosco. Rimos. Quero voltar a rir-me contigo. Quero voltar a essa pista de dança, onde o teu corpo não pára. Onde o teu corpo nunca pára. Quero ver-te sorrir. Quero ouvir-te rir. Quero voltar a ser reflectido pela luz dos teus olhos e por essa vontade inesgotável de viver. 

Ainda estás vivo. Tu? Tu não. Um dia as armas terão a força de o segurar. Aguenta só mais um pouco. Prometo que isto não termina aqui. Um dia não terás marcas no corpo. Um dia não tomarás 30 comprimidos por dia. Um dia vais esquecer todos os esquemas e todas combinações. Vais esquecer as tonturas. Vais esquecer os vómitos. O teu corpo não vai apodrecer. Um dia serás indetectável. Um dia serás intransmissível. Um dia não teremos medo de nos amar. Um dia, os nossos corpos vão descer essa avenida. As nossas mãos vão segurar essa faixa vermelha. Um dia, i será igual a i. Indetectável. Intransmissível. Vai correr tudo bem. Digo-te. Vai correr tudo bem. Um dia, todos os corpos estarão armados. Protegidos em armas invencíveis. Um dia, todos os corpos estarão prevenidos. Um dia, todos os corpos serão testados até que não restem asas desse inimigo invisível. HIV. Um dia, essas três letras não vão ganhar a guerra. Um dia, daqui a 34 anos, vamos sorrir quando nos lembrarmos de tudo isto. Eu e tu. Tu nunca estiveste estragado. Estamos nos anos 90 e o invisível não me assusta, porque te amo. 

 

Peter Pina

 

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