Desordenar o mundo e a mudança de mentalidade(s)
"Descolonizar o Museu: Programa de Desordem Absoluta" de Françoise Vergès é uma obra provocadora que questiona as estruturas de poder e as narrativas presentes nos museus ocidentais constituindo uma interessante leitura para aferir o atraso português neste capítulo da descolonização dos museus nacionais.
Vergès propõe uma análise crítica da história dos museus, que muitas vezes têm servido como ferramentas de afirmação colonial e, ao mesmo tempo, como espaços que disfarçam as violências históricas do imperialismo e da escravidão. No caso de Lisboa, onde se localizam a maioria dos museus nacionais, as suas direcções continuam a ter muita dificuldade em convocar as associações e activistas para este papel de diálogo que o museu actual tem obrigação de fazer e seguindo a definição de museu mais actualizada do ICOMOS: "um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade, que investiga, colecciona, preserva, interpreta e expõe o património material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus promovem a diversidade e a sustentabilidade. Actuam e se comunicam de forma ética, profissional e com a participação das comunidades, oferecendo experiências variadas de educação, fruição, reflexão e troca de conhecimentos” (2022).
A autora reivindica a descolonização dos museus não apenas como uma questão estética, mas como um acto político necessário para a reparação histórica das injustiças do passado.
Françoise Vergès começa a obra reflectindo sobre como as plantações escravistas se tornaram o centro de uma economia globalizada, modificando não apenas as preferências alimentares na Europa, mas também a construção de um ideal de branquitude que permeou as estruturas sociais e culturais a partir do século XVIII. A autora argumenta que os museus, longe de serem santuários do património humano, são, na verdade, depósitos de práticas extrativistas que escondem suas origens violentas. A retórica dos museus, que se apresentaram como guardiões universais da cultura, elimina as narrativas conflictivas e criminosas de suas histórias oficiais.
Um dos conceitos centrais discutidos por Vergès é o de que as desigualdades de raça, classe e género que permeiam as instituições museológicas refletem as desigualdades estruturais geradas pelo colonialismo e pelo capitalismo racial. Este ponto culmina na crítica sobre o papel do museu ocidental na manutenção da exclusão e subdesenvolvimento de sociedades do Sul Global, que ainda hoje são reféns de um sistema de acumulação e expropriação.
O papel do museu como "campo de batalha" de lutas ideológicas e políticas é amplamente debatido nas páginas do livro. Vergès propõe que, para promover a descolonização, é necessário repensar os museus como instituições que devem lutar por igualdade, justiça e representatividade.
Vergès apresenta sua proposta de "desordem absoluta", inspirada nas ideias de Frantz Fanon, ressaltando que a descolonização não será um processo mágico, mas uma necessidade urgente e uma luta contínua. Isto implica a desconstrução das narrativas coloniais e uma reconstituição das relações sociais e históricas que formaram o mundo contemporâneo. A autora também se inspira em conceitos de “autonomia” e “agência”, afirmando que a emancipação não deve estar limitada a um rótulo diluído de descolonização, mas deve focar nas realidades e experiências específicas de cada comunidade afectada pelo colonialismo. No caso de Portugal poderia trazer a importância do diálogo das comunidades afrodescendentes, remetidas quase sempre a um papel de invisibilidade e ausência das instituições museológicas ou de curadoria.
No livro, as soluções sugeridas por Vergès vão além de meras reformas institucionais, exigindo uma verdadeira reflexão sobre quem trabalha e quem é representado nos museus. A autora denuncia a falta de diversidade nas práticas curatoriais e no pessoal que opera as instituições museológicas. Propõe-se, assim, a construção de um "pós-museu", um espaço que não se limite aos paradigmas coloniais de museologização, mas que aprenda com as realidades de culturas diversas, oferecendo uma visão mais inclusiva e holística das histórias que narra. Para isso os museus teriam de alargar os espaços de intervenção das pessoas LGBTQIA+, associações de afrodescendentes e jovens que não têm tido espaço de intervenção nos museus.
Descolonizar o Museu: Programa de Desordem Absoluta é uma obra essencial para todos aqueles que tentam compreender a complexidade das instituições culturais no contexto actual sobretudo num país onde os museus com heranças coloniais como o Museu de História Natural e da Ciência em Lisboa tem a seu cargo espólios das missões antropológicas feitas por Portugal após a segunda guerra mundial e não consegue programas claros de descolonização desses legados.
É um convite à acção e à reflexão crítica sobre a história dos museus e sua articulação com as lutas sociais contemporâneas. Vergès instiga-nos numa linguagem acessível e com muitos dados de luta pessoal, a imaginar novas formas de apresentar e preservar a cultura que escapem aos modelos coloniais, vislumbrando uma transformação estrutural que reconheça e repare o passado e as injustiças que ainda marcam nosso presente. A leitura do livro não só amplia nossa compreensão sobre o papel dos museus, mas também compromete o leitor com um diálogo necessário e urgente sobre a justiça social e a reparação colonial.
André Soares