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Nem na mata se encontram histórias assim

Elisa e Marcela, em banda desenhada por Xulia Vicente 

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“Ano de 1884. Elisa está a preparar-se para ser professora na Escola Normal da Corunha, e aí  conhece Marcela. O que começa como uma grande amizade transforma-se numa paixão sem limites  que levará as duas jovens a desafiar todas as normas sociais. Não é a história de um “casamento  sem homem”, como a imprensa da época o descreveu, mas uma história de amor e liberdade para  além das fronteiras e das convenções.” - Xulia Vicente, Elisa e Marcela (La Cupula, 2023) 

Elisa e Marcela, de Xulia Vicente, conta a histórica verídica de duas mulheres que se conheceram no  final do século XIX e que, em 1901, viriam a constituir o primeiro casamento homossexual oficialmente documentado pela Igreja e algo único até aos dias de hoje

A história é um romance fílmico de amor, valentia e de dor. Em 1880, Elisa Sánchez Loriga e Marcela  Gracia Ibeas conhecem-se num colégio religioso da cidade de Coruña, apaixonando-se rapidamente,  num período onde o amor entre pessoas do mesmo sexo era não só tabu como condenável, Elisa e  Marcela mudam-se para Galiza onde partilhariam casa durante anos até, em 1901, decidirem  oficializar a sua relação pela Igreja enquanto casal heterossexual. 

Para isso, Elisa ensaia uma identidade masculina fictícia, a de um suposto primo da Argentina, Mário Sánchez, que retornaria a Galiza após a súbita partida de Elisa para Buenos Aires. De forma a cair na  benção do padre daquela paróquia, Mário pede para ser baptizado mostrando a sua vontade em  converter-se ao cristianismo após uma vida passada em Londres, alegava. Meses depois, Mário e  Marcela viriam o abalo do padre para oficializar o seu matrimónio, tornando-se assim o primeiro  casamento homossexual aprovado pela Igreja 

Porém, a farsa não durara muito tempo tendo toda a história sido exposta no jornal La Voz de  Galícia, com direito à fotografia do casamento na primeira página sob a manchete “Um casamento  sem noivo”. Provocando o escândalo e a ofensa à moral pública, Elisa e Marcela vêem-se obrigadas  a fugir da Galiza, fugindo para o Porto onde mais tarde reuniriam meios para embarcar rumo à  Argentina.

Já em Portugal, Elisa e Marcela viriam a ser presas Cadeia da Relação do Porto até, em 1902, terem  sido absolvidas pela justiça portuguesa. Talvez este seja um dos aspetos mais intrigantes na história,  Portugal, um país monárquico, conservador e extremamente católico, mostrara uma onda de  solidariedade com o “caso das duas espanholas”, expressando o apoio e simpatia com a situação do  casal. No entanto, esta onda de solidariedade não deve se vista à luz das causas do presente.  Consideradas como «mulheres sem tino», o aventureirismo da farsa era desculpabilizado pela  ingenuidade destas mulheres que consideraram possível uma subsistência autónoma ao poder masculino. A aceitação pública de uma relação homossexual mostraria demorar mais de um século  a ser alcançada em Portugal. 

Neste pequeno livro de banda desenhada, Xulia Vicente, natural da Coruña, formada em belas artes, com uma diversa  panóplia de BDs, revistas e fanzines, algumas das quais premiadas internacionalmente, mostra-nos  como este caso só pôde ser resgatado porque saltou para a esfera pública, deixando sua marca na  imprensa da época. A partir da pesquisa de Narciso de Gabriel, professor de História da Educação na Universidade da Corunha, no qual reconstitui o caso de Elisa e Marcela a partir de documentos oficiais, a autora partilha a existência de muitos pormenores e elementos que não são claros e em  relação aos quais só se pode especular entre diferentes possibilidades como o mistério em torno da  gravidez de Marcela e se isso poderia ter sido o detonador do plano, ou se Elisa teria preferido  identificar-se como Mário para o resto da vida. 

Mostrando querer dar a conhecer e tornar visível a vida destas duas mulheres, Xulia Vicente recorre  à ficção para preencher algumas das lacunas da história, atentando o não estar perante uma história  cem por cento fiel à realidade. Porém, sabemos que a vida destas duas mulheres existiu assim como  o seu profundo e aventureiro amor. Anos antes desta edição de Elisa e Marcela, em 2019, a Netflix produziria um filme homónimo, da realizadora e argumentista Isabel Coixet, com a participação de  Natalia de Molina (Elisa) e Greta Fernández (Marcela). 

Encontramos assim, em uma das mais belas e transgressoras histórias de amor do séc. XX fonte de  inspiração para filmes, exposições, peças de teatro e agora uma banda desenhada que é símbolo do orgulho LGBTQIA+. 

 

ISBN: 9788418809736

Editor: LA CUPULA

Páginas: 36

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.