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Emanuel Caires: "Senti que o VIH me ia roubar sonhos, mas a verdade é que eles continuaram comigo"

Emanuel Caires vih

A propósito do Dia Mundial de Luta Contra a Sida fomos falar com Emanuel Caires, uma das 10 pessoas que deram a cara pela campanha "Sou VIH+ e Vísivel". 

dezanove: Quem é o Emanuel?
Emanuel Caires: Esta é das piores perguntas que me podem fazer. Não tenho dúvida que eu serei sempre a mesma pessoa introvertida e introspectiva guiada pelos valores de respeito, de empatia e de honestidade - aplicado a mim mesmo e às outras pessoas. As mudanças assustam-me, mas eu sei que serei sempre uma pessoa em constante mutação. Eu próprio faço questão de estar num processo de desconstrução, conhecimento e entendimento de mim mesmo, bem como da sociedade que me rodeia.

Para mim, não é possível descolar a minha identidade, a minha personalidade, do diagnóstico do VIH ou do meu coming out como homem gay. Foram duas situações que aconteceram entre os 17 e os 18 anos que, apesar de não me definirem e não serem a totalidade do meu corpo e do meu espírito, foram traumáticas e aconteceram numa fase ainda de desenvolvimento pessoal. Isto para dizer que o Emanuel é uma pessoa que foi moldada por estas circunstâncias, mas que fê-lo abrir-se ao mundo, pois foram um banho de realidade. Por isto, eu vejo-me também como uma pessoa de resistência e persistência, resistência às adversidades que se cruzam no meu percurso pessoal que, em persistência, não deixo que me sejam impedimento de nada porque os meus sonhos e os meus objectivos são válidos e alcançáveis. Eu não sou uma pessoa traumatizada, mas não posso negar que sou fruto destas experiências - e isso não é mau, é uma transformação que para mim foi bonita de ver.

"Vejo-me também como uma pessoa de resistência e persistência"

É por estas razões que durante vários anos dediquei-me totalmente ao activismo na Madeira, onde vivia, procurando dar respostas nas áreas LGBTI+ e VIH/Sida que não haviam, ao mesmo tempo que essa solidariedade ressignificava as minhas experiências. Actualmente faço a minha vida em Lisboa na procura da minha realização pessoal e profissional, que durante alguns anos não foram prioritárias. Estudo Publicidade e Marketing e espero ganhar mais asas quando terminar o curso, à exploração de novas formas de viver, novos conhecimentos e novas formas de intervenção na sociedade.

 

Há quantos anos vives com a infecção por VIH? Como vivenciaste o diagnóstico na tua realidade (falando da tua localidade / país / grupo social)?
Vivo com VIH há precisamente 11 anos. A 1 de Dezembro de 2010, estava eu uma segunda vez internado devido à infecção aguda do VIH que se manifesta entre 2 a 4 semanas após a infecção. Foi uma sorte apresentar tantos sintomas da infecção - que não eram efectivamente manifestações de sida -, pois permitiu-me ser diagnosticado no início da infecção e iniciar tratamentos precocemente, caso contrário poderia ter ficado vários anos com o vírus sem sabê-lo. Nunca tinha feito nenhum teste ao VIH e não sei ao certo se iria fazê-lo nos meses seguintes.

O diagnóstico foi traumático, passei por um processo de luto que desencadeou numa depressão, também influenciada pela separação do meu pai e da minha mãe e pelo coming out como homem gay, que provocou um ambiente familiar de violência e insegurança. Acredito que o meu processo de luto aos 18 anos foi tão forte que é difícil perceber, actualmente, quem era eu antes do diagnóstico. A minha vivência com o diagnóstico foi conflituosa devido a muitas dúvidas e incertezas, bem como ao auto-estigma que potenciaram a minha culpabilização pela infecção. Entendi que esse estava a ser um problema quando fui à Abraço e, uma pessoa que hoje é amiga e que admiro, me perguntou se eu já me desculpei pelo que aconteceu. Foi quando comecei num processo de desculpabilização - de mim e do outro - e assumi a minha responsabilidade no diagnóstico.

A minha vivência com o diagnóstico foi conflituosa devido a muitas dúvidas e incertezas, bem como ao auto-estigma que potenciaram a minha culpabilização pela infecção. Entendi que esse estava a ser um problema quando fui à Abraço e, uma pessoa que hoje é amiga e que admiro, me perguntou se eu já me desculpei pelo que aconteceu. Foi quando comecei num processo de desculpabilização - de mim e do outro - e assumi a minha responsabilidade no diagnóstico.

Estes meses em depressão foram, sem dúvida, o pior momento da minha vida: senti-me sem chão, numa avalanche de dúvidas e incertezas. Foi aí que iniciei um processo de psicoterapia que me permitiu recuperar maioritariamente em quatro meses e regressar à vida normal nove meses depois, ao ingressar num curso profissional. Anos depois, comecei a trabalhar na área do marketing. Uma das formas de procurar apoio foi também em associações e em espaços online e, quando estive preparado, a ser visível ao revelar publicamente que vivo com VIH. Eu senti que o VIH me ia roubar sonhos, mas a verdade é que eles continuaram comigo, trouxe outros sonhos e novos objectivos.

 

Como é viver com VIH no século XXI?
Viver com VIH pode ser desafiante, mais ao nível social que da saúde. Apesar de não haver uma cura, é possível uma pessoa viver com VIH e ser indetectável = intransmissível. Isto é, ter uma infecção crónica que necessita de tratamentos para o resto da vida, mas que suprimem o vírus (indetectável) e que não o transmite nas suas práticas sexuais (intransmissível). É o que acontece comigo. A partir do momento em que esta evidência científica se tornou unânime cientificamente, para mim foi uma sensação de ter a minha vida de volta de uma forma mais livre. Deixei de ser portador de medos e inseguranças sobre como viver com VIH.

Os tratamentos oferecem uma boa qualidade de vida que me coloca também com uma esperança média de vida semelhante à de quem é seronegativo para o VIH. Mas é o estigma que continua a ser o maior desafio, não é por acaso que são muito poucas as pessoas que divulgam o seu estado serológico. Na maioria das vezes, as pessoas escondem devido a esse estigma carregado de preconceitos do século passado. A ciência avançou, mas o entendimento da sociedade está a passo de caracol. Eu próprio senti essa necessidade de estar no armário com medo de represálias, mas é curioso que a discriminação que mais sofri foi quando eu não tinha o meu estado serológico divulgado publicamente, em que várias vezes tentavam interferir nas minhas relações ao fazer outing aos meus parceiros - que foram tentativas frustradas, pois na verdade eles já estavam mais que informados sobre eu viver com VIH. Comecei a perceber que o empoderamento é uma boa arma contra o estigma.

São muito poucas as pessoas que divulgam o seu estado serológico. Na maioria das vezes, as pessoas escondem devido a esse estigma carregado de preconceitos do século passado. A ciência avançou, mas o entendimento da sociedade está a passo de caracol.

Eu próprio senti essa necessidade de estar no armário com medo de represálias, mas é curioso que a discriminação que mais sofri foi quando eu não tinha o meu estado serológico divulgado publicamente.

Apesar disto, há espaços que para mim ainda me dão uma sensação de insegurança, tal como no trabalho ou na faculdade. Não é algo que eu consiga falar abertamente, porque a minha experiência diz-me que são os espaços normativos e onde predomina o privilégio que há menor entendimento e menor abertura para a informação sobre o VIH, ou então a informação que existe é estigmatizante. Há um certo distanciamento sobre o assunto e até sobre a possibilidade de que o VIH possa fazer parte das vidas destas pessoas.

Achas que ainda há muita desinformação relativamente ao VIH?
O pior não é haver desinformação, é haver desinteresse e acho que esse é o grande desafio. Apercebi-me disso nestes primeiros meses em que lancei o meu projecto, o Eu Tenho HIV, nas redes sociais, pois as pessoas que mostram maior interesse são precisamente aquelas que já tinham alguma consciência sobre o VIH ou que são pessoas de comunidades marginalizadas. Acredito que isto acontece ainda em consequência das propagandas dos anos 80 e dos pensamentos construídos a partir daí, que também colocaram estas comunidades informadas devido ao peso histórico da pandemia da sida. Mas esses conhecimentos entranharam o senso-comum, tornaram-se em crenças bem enraizadas e nem a ciência está a conseguir combatê-los de forma eficaz. A única ferramenta para arrancar essas raízes é através da visibilidade, de várias formas.

A visibilidade não é só sobre as pessoas que têm o vírus divulgarem o seu estado aos seus círculos relacionais ou publicamente. É também sobre dar lugar às narrativas seropositivas e impulsioná-las. Até hoje, acredito que algumas pessoas divulgaram publicamente o estado serológico - as pessoas que participam na campanha não são as primeiras! No entanto, há uma lacuna na memória colectiva onde não há esse registo, seja pelo assunto já não ser mediático ou porque a comunidade que vive com VIH não construiu essa memória. Isto para dizer que é importante valorizar e impulsionar as vivências de quem tem VIH, com a sociedade a dar suporte, para que as nossas histórias sejam ouvidas e protagonizadas por nós e para dar lugar a vivências cada vez mais actuais, principalmente no que diz respeito ao impacto do diagnóstico, porque isto também é informação!

A visibilidade não é só sobre as pessoas que têm o vírus divulgarem o seu estado aos seus círculos relacionais ou publicamente. É também sobre dar lugar às narrativas seropositivas e impulsioná-las.

A visibilidade é também sobre literacia em saúde e consciencialização do VIH e outras ISTs, não só num sentido preventivo mas também de como é viver com o vírus e desconstruir as ideias erradas que ainda persistem. É necessário alargar as consciências ao passar informação factual sem estigma e sem alarmismos, ao mesmo tempo tirar também o peso que se coloca nas ISTs, que não se vê acontecer noutras infecções contagiosas, só porque a principal via de transmissão é a sexual. Mas infelizmente, o que eu vejo é que são as organizações comunitárias a agir sobre isto e a fazer o que é a função do Estado. A verdade é que, para se conseguir tudo isto, é preciso quebrar a bolha do privilégio de muitas pessoas que as coloca numa posição de desinteresse sobre o assunto, muitas vezes sob uma bolha heterocisnormativa.

A visibilidade é também sobre literacia em saúde e consciencialização do VIH e outras ISTs, não só num sentido preventivo mas também de como é viver com o vírus e desconstruir as ideias erradas que ainda persistem. É necessário alargar as consciências ao passar informação factual sem estigma e sem alarmismos, ao mesmo tempo tirar também o peso que se coloca nas ISTs, que não se vê acontecer noutras infecções contagiosas, só porque a principal via de transmissão é a sexual. Mas infelizmente, o que eu vejo é que são as organizações comunitárias a agir sobre isto e a fazer o que é a função do Estado.


O que te levou a participar na campanha “Sou VIH+ e Visível”?

Por uma razão muito simples: visibilidade! Quando eu tive o diagnóstico, uma das coisas que mais falta me fez foram referências de pessoas que vivessem com VIH. Esta visibilidade quebra um ciclo de estigmas, discriminação, preconceitos e violências que as pessoas que têm VIH estão muitas vezes sujeitas. Participar na campanha é preencher essa lacuna de visibilidade que ainda existe, embora cada vez menos. Acredito que a campanha tenha sido como um abraço para muitas pessoas com VIH e que devido ao seu contexto socioeconómico não podem revelar o seu estado serológico. Na verdade isso provou-se com as várias mensagens que fui recebendo.

O bonito de ser visível é que isso proporciona também um apoio entre pares, ainda mais hoje com as redes sociais. Revelamos o estado serológico do VIH publicamente e apercebemo-nos que as pessoas com VIH estão também ao nosso lado, nas nossas famílias, nas nossas amizades, em quem seguimos e em quem nos segue nas redes sociais. Mas o silêncio sobre o VIH é ensurdecedor e esta campanha quebra também esse silêncio.

O bonito de ser visível é que isso proporciona também um apoio entre pares, ainda mais hoje com as redes sociais. Revelamos o estado serológico do VIH publicamente e apercebemo-nos que as pessoas com VIH estão também ao nosso lado, nas nossas famílias, nas nossas amizades, em quem seguimos e em quem nos segue nas redes sociais. Mas o silêncio sobre o VIH é ensurdecedor e esta campanha quebra também esse silêncio.

Além disso, participar na campanha é afirmar-me e empoderar-me. Sou eu a contar a minha história e não outras pessoas por mim, algo que infelizmente ainda acontece demasiado no associativismo VIH/Sida. Há dois anos participei numa acção artivista do Coletivo Viral na Terreiro do Paço e, a par da participação nesta campanha, foram o boost de confiança que eu precisava para ser mais vocal e visível em relação ao VIH e a todas as questões inerentes. Acredito que se não tivessem sido estes dois episódios impulsionados por pessoas activistas que admiro, eu não teria também criado o projecto Eu Tenho HIV nas redes sociais.

 

Entrevista de Ricardo Falcato e Marta Pimentel Santos