"Enoja-me que tenhamos uma visão tão simplista de uma mulher que não nos incomode e que ela seja apenas o seu sistema reprodutivo."
Tenho acompanhado com alguma repugnância estes últimos tempos e os artigos fóbicos e que atacam a comunidade LGBTQIA+.
Se ainda nada escrevi é por que me é incompreensível as pessoas não perceberem quão violentas são as suas palavras para quem as lê. Repugnam-me as comparações idiotas e simplistas, os paralelos risíveis e, sobretudo, o chorinho do macho ofendido que perde o status.
Enoja-me sobretudo os argumentos de "salvar as mulheres" que pululam em quem os escreve. Argumentos esses que já serviram para justificar e sustentar tantos crimes contra a humanidade que, não sei, confesso, como é que quem os lê continua a achar que são válidos. Para além de colocar constantemente as mulheres (cis) numa posição de constante vitimização e vulnerabilidade que dá tanto jeito à manutenção da sociedade como a conhecemos: cheia de opressões e preconceitos e de homens, machos, para nos salvarem.
Enoja-me também que tenhamos uma visão tão simplista de uma mulher que não nos incomode e que ela seja apenas o seu sistema reprodutivo. Estamos taco-a-taco com aquele senhor que diz que Deus Nosso Senhor nos fez não para andarmos para aí a fornicar rapazes e raparigas e a ter prazer, mas antes para procriar e nem nos apercebemos.
Assusta-me que o chamado "quarto pilar da democracia", a comunicação social, compare o legítimo direito à liberdade de expressão ao que são crimes de ódio e que os promova como "opinião" nos seus conteúdos. É um barómetro da qualidade da nossa democracia e, tenho-vos a dizer, está em processo degenerativo rápido.
Sou uma mulher cis hetero. Isto quer dizer que o sexo com que nasci se coaduna com o género com que me identifico. Sou muito, mas tão muito mais do que o meu sistema reprodutivo. Sinto-me ofendida que me reduzam a uma vulva. Acho até misógino que o façam. Cinco vagas de feminismo para virem meia dúzia de energumenos dizer que o que me define são as minhas mamas. (Conseguem entender o ridículo, certo?!)
A Simone de Beauvoir dizia que "Ninguém nasce mulher, torna-se". Isto porque uma mulher é uma construção social, temporal e geograficamente definida: uma mulher em 1930 é diferente da da actualidade e é diferente em Portugal e no Brasil. Uma mulher é também os seus constrangimentos, os padrões e costumes e as formas como se conseguiu libertar - ou não - destes e a sua definição e autodeterminação a si cabe.
Sou uma mulher cis hetero e sinto-me confortável e perfeitamente à vontade com a minha (eventual?) feminilidade. Confesso que me pergunto quão mal resolvidos estarão vocês todos para terem necessidade de escrever estes textos e para se sentirem tão ameaçados com a existência de pessoas LGBTQIA+.
Paula Gil, Precária, Mulher, Feminista, Esquerdista e Pantera Rosa.