Entrevista a Rute Bianca, pioneira da visibilidade trans em Portugal, no lançamento de “Quem?”, a sua autobiografia
A autora fará a presentação do livro na Livraria Aberta, no Porto, dia 26 de Abril às 18h.
Aos 20 anos, partiu para Paris para se “fazer mulher”. Trabalhou como vedette em algumas das casas de espectáculo mais famosas da Europa. Viveu em França, Espanha, Suíça, Bélgica, Alemanha e Holanda. Em 1983, tornou-se uma das primeiras pessoas a submeter-se a uma cirurgia de redesignação sexual, em Casablanca, que quase lhe custou a vida. Após o regresso a Portugal, desmultiplicou-se em entrevistas à comunicação social, contribuindo para uma maior consciencialização da sociedade portuguesa para a realidade das pessoas trans.
Estas e muitas outras aventuras estão agora reunidas no livro “Quem?”, a sua autobiografia, preparada e editada pela amiga Jó Bernardo, nome central na história do activismo trans em Portugal. O dezanove.pt foi falar com Rute Bianca, a poucos dias da apresentação do seu livro no Porto.
dezanove.pt: Como decidiste começar a escrever as tuas memórias, primeiro num blog, e agora reunindo-as em livro?
Rute Bianca: Isto tudo tem uma razão de ser. Em 2007, eu estava a dar os primeiros passos na aprendizagem sobre a internet. E li uma crítica sobre mim. Descobri uma crítica sobre mim que me deixou muito triste. Uma pessoa insultou várias personalidades e entre elas estava eu. Fiquei muito magoada com aquilo e então respondi a esse senhor em três grandes mensagens.
Esses insultos foram num blog?
Sim, foram num blog. Eu disse que ele merecia.... Insultei-o, pronto. Estava revoltada.
Mas já era um sonho que eu tinha: escrever um blog, escrever a história da minha vida. Eu passei tantas situações. Sei que muitas delas foram culpa minha, porque eu queria sempre transcender-me, ir ao desconhecido. Quis sempre o jogo do gato e do rato. E isso levou-me a situações complicadas. Então comecei a escrever no blog, em 2010, conforme me ia lembrando.
Já tinha a intenção que um dia, no futuro, a minha história virasse um livro. Como tinha lido tantas histórias de transexuais, achei que eu também poderia ter essa honra, porque a minha história também é uma história bonita. E então pedi ajuda. Pedi ajuda à Jó [Bernardo]. Quando a doutora Maria José [Campos] leu o livro, disse que a minha história era “avassaladora”. E eu fiquei muito emocionada. Pensei, “Ó meu Deus, se uma doutora como a Maria José, que é uma pessoa que convive com tanta gente, tem tanta experiência, e se ela diz que a minha história é interessante, então se calhar realmente vale a pena escrever o livro”. Foram elas que me ajudaram. E então o livro foi para a frente.
No blog e no livro mostras os momentos felizes da tua vida, mas também as dificuldades que tiveste de ultrapassar. Quiseste partilhar esse lado, eventualmente com pessoas que possam estar a começar o seu percurso de transição.
Eu não tenho culpa de ter nascido diferente. Eu fiz tudo para me parecer o mais possível com a mulher com que eu me sentia. Dignificar a mulher que eu me sentia, e viver como tal. Eu tinha que apagar os traços masculinos do meu corpo. E só podia apagá-los através de operações e de retoques de silicone. O preço a pagar… ao princípio eu não sabia que ia ser tão caro. Mas é o reverso da medalha, não é? Como se diz, não há amor sem dor.
Como ouvi muitas vezes, “Nunca serás uma mulher”. Mas visualmente eu parecia uma mulher. Eu ainda pareço, sou velhota, mas ainda pareço. E é isso que me satisfaz e foi para isso que eu sempre lutei. É assim que eu me sinto feliz. Aquelas fotografias que lá estão [que mostram os problemas de saúde que resultaram de tratamentos e operações] são para que as pessoas compreendam que nós, as transexuais, não fazemos isto de ânimo leve. Fazemos com muita dor, muito sacrifício, porque realmente nos sentimos diferentes. E fazemos o que for preciso para concretizar a nossa realidade, a realidade que os nossos olhos vêem. Que é para projectarmos uma imagem bonita, para sermos aceites.
Em show no Barcelona de Noche, uma das casas de espectáculos mais famosas de Espanha nos anos 1980
Tu foste para Paris em 1979 para te “fazeres mulher”, como escreves no livro. Esse processo era impensável em Portugal à altura.
A minha amiga Lelé foi primeiro para Paris. Quando veio, vinha transformada, vinha “mulher”. Eu já tinha ido a Lisboa ver as trans, já tinha visto os peitos e aquelas caras, aqueles jeitos femininos. Pensava, “Ai meu Deus, eu sou assim! Só que eu ainda estou dentro desta pele. Mas vou libertar-me dela”. E então fui perguntando: o que é que tu fazes? Hormonas? Médicos? Tratamentos? A mensagem passava de boca em boca. Em Paris sabíamos que tínhamos os médicos todos. Tínhamos tudo à disposição. É lá que fazem a mama. É lá que fazem o corpo, é lá que se ajeita. É difícil? É. Porque o trabalho é complicado. Vais ter que passar fome. Vais ter que dormir na rua. Vais ter que mendigar. Mas vais conseguir. Temos que ser preservantes, temos que ser resilientes. E eu lá fui.
"É difícil? É. Porque o trabalho é complicado. Vais ter que passar fome. Vais ter que dormir na rua. Vais ter que mendigar. Mas vais conseguir. Temos que ser preservantes, temos que ser resilientes. E eu lá fui."
E sofri esses problemas todos. Essas coisas todas. Mas consegui. Consegui o meu primeiro peito. Gritei aos céus: já tinha mamas! Eram pequeninas, mas para mim eram grandes! Tive imensos problema, mas ajeitei o meu corpo de acordo com o que os olhos da minha alma viam. Que é o que eu digo sempre: eu pus o exterior a condizer com o interior. Eu tinha que tirar os traços masculinos. Apagá-los. E comecei a modificar: nariz, pommettes, o peito, as ancas, as pernas. E começou a formar-se a Rute. Que a Rute já existia por dentro. Só ainda não existia era por fora. E foi óptimo. Foi uma maravilha.
Há um ponto marcante na tua vida, que relatas no livro, que é quando vais a Marrocos realizar a cirurgia de redesignação sexual.
Foi como se eu tivesse nascido aos 24 anos. Quando me olhei ao espelho e vi uma mulher completa, eu disse, “Ó meu Deus, obrigado. Eu sou a Rute completa”. É como se tivesse renascido. Ainda fui violada [à chegada a Marrocos]. Que nojo. Mas graças a Deus consegui. E quando terminou a operação, correram comigo, ainda cheia de sangue. Mas não importa. A minha mãe e a minha família ajudaram-me na recuperação. E foi fantástico. Os meus familiares aceitaram depressa. Mesmo tendo uma mentalidade antiga, aceitaram depressa.
Eu tinha o peso de ter a Rute antiga agarrada a mim. Sempre me deu imensos problemas a nível da aceitação. As pessoas não compreendiam. E eu tinha que explicar tudo. Como se os meus vizinhos fossem as crianças da escola e eu fosse a professora que tivesse que lhes ensinar tudo, e explicar todo o processo. Para poder ser aceite. Eu vivi sempre de medos. O medo da não aceitação é horrível. O medo da rejeição é horrível. E nós já vivemos uma solidão grande. Se alguém nos aceitar, se alguém nos apoiar, já nos ajuda a suportar a dor.
"Eu tinha que explicar tudo. Como se os meus vizinhos fossem as crianças da escola e eu fosse a professora que tivesse que lhes ensinar tudo, e explicar todo o processo. Para poder ser aceite. Eu vivi sempre de medos. O medo da não aceitação é horrível. O medo da rejeição é horrível. E nós já vivemos uma solidão grande. Se alguém nos aceitar, se alguém nos apoiar, já nos ajuda a suportar a dor."
Depois, quando voltei definitivamente para Portugal [nos anos noventa], houve a frustração de ter tido tudo e de vir para um país que me maltratou. Porque Portugal maltratou-me muito. Fizeram muito mal comigo, bateram-me muito. Mas depois eu comecei a ganhar-lhe amor. Porque Portugal é o meu país. E são as minhas raízes. Daqui não poderia sair. Gostaria de ter uma casa em Paris, claro! E uma casa na Suíça, quando quisesse ir lá [risos]. Mas Portugal é aqui que eu estou e é aqui que eu vou ficar.
Rute e Zé Luís em Paris
No livro contas que tiveste sempre a família do teu lado. E também viveste uma história de amor muito bonita com o teu companheiro Zé Luís.
Quanto à família, só tenho que agradecer. Fui uma privilegiada por ter uma família boa. Sei que a maior parte das famílias não aceitam as trans. Não aceitam as pessoas da comunidade. São postas fora de casa. São maltratadas. E eu tenho pena delas. Por isso peço a Deus para as ajudar, para que elas tenham forças para continuar. Mesmo sem família. Porque muitas há que nunca tiveram família e continuaram em busca do seu sonho, em busca da sua felicidade. Essas pessoas até as admiro mais, porque elas não precisaram de suporte para conseguirem experienciar e fazer a vida delas, para lutar no rumo da felicidade.
E sobre o Zé Luís?
O Zé foi um homem que me aceitou, que me amou. Foi um anjo caído do céu. Eu vivi uma linda história de amor. E toda a gente tentou estragar a nossa história. Houve dezenas de pessoas que se meteram na nossa vida para nos destabilizar. Ele foi despedido dos empregos. Ele andava à porrada com os amigos. Diziam-lhe, “A tua mulher já foi um homem”. Tinha muitos problemas, imensos, imensos, imensos. Ele chorava, nós chorávamos muitas vezes juntos. Ele dizia-me, “Ó filha, porque é que as pessoas não nos compreendem? Porque não nos aceitam, não nos deixam viver uma vida normal?”.
A droga foi um refúgio que nós encontramos, infelizmente. Para fugirmos. Para encobrirmos. Para, sei lá, para suportar tudo. Mesmo que fôssemos uns drogados ocasionais, nunca fomos drogados de “24 horas”. Até nisso eu fui privilegiada na vida. Que tive um companheiro também com cabeça, tronco e membros. Trabalhava, tinha o trabalhinho dele. Mas eu experimentei de tudo. Porque aquilo foi uma escalada. Acontece.
A família dele também me rejeitou ao princípio. Uma vez, a mãe do Zé entrou pelo café dos meus pais adentro. Eu estava a servir e ela disse-me, “Minha senhora, quero falar com a Rute”. Perguntei-lhe porquê. “Porque o meu filho, disseram-me, anda metido com um homem, com um travesti. E eu quero saber quem é. Quero saber quem é essa Rute. Quero ver essa Rute”. E eu disse-lhe, “a Rute sou eu, minha senhora”. Ela ficou assim a olhar para mim e, quando ela me leu, disse-me, “Mas eu estou a ver uma mulher”. E eu tive que lhe explicar tudo. Com o tempo ela foi amaciando. E dizia-lhe [ao filho], “Olha, é uma mulher que nunca te vai poder dar filhos. É uma mulher com quem não vais poder casar. É uma mulher por quem vais ter que sofrer, porque as pessoas não vão aceitar. Os familiares não vão aceitar. Os amigos não vão aceitar. Mas pronto. Se é isso que te faz feliz, então, meu filho, sejam felizes os dois”. Do ódio passa-se ao amor.
Participação na primeira Marcha do Orgulho do Porto em 2006.
Sobre o teu envolvimento no activismo e na visibilidade das pessoas trans. Foste das primeiras a dar entrevistas à imprensa e à televisão.
Eu acho que o ativismo já nasceu comigo. Porque eu nem me dei conta disso. Dei conta que tinha que lutar. Eu era uma transexual e estava no processo de tentar obter os papéis [para alteração oficial de nome e género]. Fui convidada para ir às televisões e fui para as televisões explicar o que era. As entrevistas começaram em 1992. Também eram convidadas outras pessoas da comunidade LGBT e cada qual defendia a sua causa. Todos juntos, porque a comunidade é só uma e todos juntos fazemos muito. Eu fui lutando do meu lado. Fui a vários programas, conversas, tentando abrir o horizonte mental das pessoas. Para que as pessoas nos aceitassem, olhassem para nós como seres humanos. Porque olhavam para nós como uma coisa estranha: “são aberrações”. E através dos programas de televisão conseguiu-se mais respeito.
Ajudou na aceitação?
Muito. Eu acho que o meu activismo veio a partir daí. As marchas [do Orgulho] foram uma continuação dos programas da televisão. Porque tinha que ser. Tinha que haver um prolongamento.
No livro comentas vários temas a partir da tua situação actual de mulher de 65 anos. Sentes que há uma invisibilidade, mesmo dentro da comunidade LGBT, sobre as pessoas de idade mais avançada?
Eu acho que estamos num mundo bonito. Apesar de todas estas incongruências, só podemos deitar as mãos ao céu e agradecer. A Europa é um paraíso. Nós aqui podemos ser livres. Podemos viver a nossa vida como queremos. Mesmo com todas as pedras que nos atiram, a gente tem uma maneira de as evitar. O que não nos mata, fortalece.
A velhice. Está a ser uma velhice tranquila. Está a ser uma velhice doce. Porque a gente tem que se consciencializar que é assim. E eu não vivo do meu passado, mas vivo com o meu passado agarrado a mim. E o meu passado, eu preciso dele. Preciso de ver aquela Rute que eu fui, porque ajuda a minha sanidade mental. Às vezes nem sei quais são as reacções que tenho. É complicado.
Depois do livro, o que se segue? Já ouvimos falar de um filme.
[risos] O filme chama-se “A Grande Rute”, como no filme “O Grande Gatsby”, que também tinha uma vida de opulência e vivia numa solidão incrível. Quando vi aquele filme, revi-me muito e sofri com ele.
Mas falava do filme do Thiago Carvalhaes.
Em 2017, depois do assassinato da Gisberta, o Thiago Carvalhaes fez o documentário sobre a Gisberta [“A Gis”], que foi apresentado em festivais e ganhou vários prémios. E ele leu o meu blog, interessou-se, andou atrás de mim. Eu não queria nada, mas ele tanto andou atrás de mim.... Insistiu, insistiu, insistiu. E eu, pronto, aceitei falar com ele. Quando ele fez o projeto do filme, eu ainda nem imaginava o livro. Ele disse-me, “Vamos fazer um filmezinho, um documentário”. E o documentário alargou-se. Fomos filmar a Paris e ele fez milhares de horas de entrevistas. Vamos ver o que sai.
Fotos: Rute Bianca
Entrevista realizada a 15 de Abril de 2025, no Centro Comercial Alameda, no Porto.
Pedro Leitão