Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Dezanove
A Saber

Em Portugal e no Mundo

A Fazer

Boas ideias para dentro e fora de casa

A Cuidar

As melhores dicas para uma vida ‘cool’ e saudável

A Ver

As imagens e os vídeos do momento

Praia 19

Nem na mata se encontram histórias assim

"Estamos na vanguarda internacional no que diz respeito ao Direito. Mas perdura o velho problema português da distância entre leis e prática"

miguel vale de almeida

Gosto de distinguir dois sentidos para "25 de Abril". Um, mais genérico, abarca toda a experiência democrática pós-1974. Outro, mais restrito, refere-se ao período revolucionário e instável entre o 25 de Abril de 1974 e a dita "normalização" posterior ao 25 de Novembro de 1975. Quando penso no primeiro, sinto orgulho num país que conseguiu garantir legalmente todos os direitos políticos, cívicos e humanos (ainda que não todos os direitos sociais). Quando penso no segundo, vejo os sinais da dificuldade em colocar no debate político as questões de género e sexualidade.
 
 
De facto, o período revolucionário centrou-se em duas questões: por um lado, o estabelecimento dos direitos cívicos e políticos fundamentais numa ordem democrática. Por outro, foi um período marcado pelas tensões entre grandes projectos de economia-política bem distintos. Simplificando, entre capitalismo e socialismo, democracia liberal e democracia popular. Acabou triunfando o modelo capitalista e de democracia liberal, se bem que segundo uma versão que se pode designar social-democrata e de estado social. Apesar de a igualdade legal entre homens e mulheres ter ficado estabelecida imediatamente, como pilar incontestável de qualquer dos modelos de democracia, os assuntos relacionados com a autonomia corporal e reprodutiva das mulheres, bem como os assuntos relacionados com a orientação sexual e a identidade de género, ficaram relegados para bem mais tarde. A frase normalmente atribuída a Galvão de Melo sintetiza essa subalternização temática: "O 25 de Abril não se fez para prostitutas e paneleiros". O facto de se tratar de um general da direita extrema não significa que a ideia não fosse partilhada por outros sectores políticos. De facto, sexismo e homofobia perduraram, e muito, como aspectos ideológicos de toda a sociedade e sectores políticos, em detrimento de questões de classe social (o mesmo aconteceria, aliás, com as questões do racismo e da reparação colonial).
 
Foi preciso esperar até à segunda metade dos anos 1990 para que a agenda de género e sexualidade penetrasse finalmente o espaço público, político e mediático. Pequenos grupos e activistas individuais já tinham trabalhado e insistido, e devem ser reconhecidos por isso, mas fizeram-no sem que se tivessem produzido efeitos notórios. Com a adesão de Portugal "à Europa" (1986) e com a luta contra a sida como ventríloqua das reivindicações LGBT, apanharíamos o comboio tarde, mas apanharíamos um comboio de alta velocidade. A própria globalização ajudou nisso, pois o grosso do movimento social LGBT cresceu em Portugal já dentro na agenda pós-sida, focada nos direitos não apenas de legalização, liberdade sexual, afirmação de visibilidade e orgulho, mas nos direitos de reconhecimento pleno de cidadania nos aspectos que versam directamente o ser-se gay ou lésbica: uniões de facto, casamento, parentalidade e família. A eles juntar-se-iam também os direitos relacionados com a identidade de género (alteração de nome e sexo nos registos, acesso a cuidados médicos, etc.) e os direitos relacionados com a reprodução. Voltando atrás nos parágrafos, a vitória do Sim no segundo referendo do aborto foi fulcral para abrir as portas a uma nova forma de a sociedade encarar direitos de género e sexualidade. Entre 2007 (referendo da IVG) e 2010 (aprovação do casamento), o salto foi gigantesco.
 
Ao longo do processo entre a despenalização da homossexualidade ou a introdução da orientação sexual no Artigo 13 da Constituição, num extremo, e as conquistas em torno da PMA, no outro, a sociedade foi mudando e, com ela, os partidos políticos. Quando as questões LGBTQIA+ passaram do nicho de pequenos partidos alternativos para o centro do arco da governação, a mudança estava garantida (se bem que sempre com hierarquias de prioridades, assentes nas estruturas sexistas da sociedade, como se viu pela mais tardia atenção à despatologização da transsexualidade ou especificamente às lésbicas e seus projectos reprodutivos).
 
Estamos muito bem, 50 anos depois do 25 de Abril, e mesmo na vanguarda internacional no que diz respeito ao Direito. Mas perdura o velho problema português da distância entre leis e prática. Precisamos de mais combate à discriminação e de mais acção positiva (como formações e ensino) e de vigilância. Sobretudo agora que os movimentos extremistas de direita e fundamentalistas em todo o mundo escolhem as pessoas LGBTQI+ como figuras do Mal a extirpar dos seus projectos de sociedade.
 
Miguel Vale de Almeida