Este dia na História: em 1902 nasce Maria Henriqueta, «fruto do amor» de Elisa e Marcela
A citação do título é do Jornal de Notícias, o periódico que mais atentamente acompanhou o caso das duas espanholas unidas no célebre “casamento sem homem”, em 1901. Recentemente, foi descoberto no Arquivo Distrital do Porto o documento que comprova o nascimento de Maria Henriqueta, filha de «pai incógnito», mas, afinal, do amor de Elisa e Marcela.
Recordemos o caso. Elisa, assumindo uma identidade masculina, como Mário, casa-se com Marcela na cidade galega da Corunha. Rapidamente são descobertas, o que as obriga a fugir, atravessando a fronteira para escaparem às acusações da justiça espanhola. Refugiando-se no Porto, pouco depois são denunciadas e presas. As autoridades portuguesas rejeitam, no entanto, o pedido de extradição imediata dirigido pelo país vizinho. Esgotado o prazo legal de prisão preventiva no final de Agosto, Elisa e Marcela são finalmente deixadas em liberdade.
Os meses seguintes são passados em aparente tranquilidade na cidade invicta. A maior prova que disso temos é o silêncio da imprensa, que não voltará a mencionar o caso nos meses seguintes. Esse silêncio é interrompido no Dia de Reis de 1902 com a notícia do nascimento de Maria Henriqueta, filha biológica de Marcela, uma menina «bonita e forte», como escreve o JN a 8 de Janeiro. No Hotel Gibraltar, onde à altura residiam, o jornalista encontrou uma Elisa atarefada nos cuidados com Marcela e a criança, que se limitou a responder assim à persistente curiosidade mórbida da imprensa: «Que importa ao público o pai da criatura? (…) É coisa de outro mundo que nasça um menino ou uma menina?... Não há nada mais natural: uma mulher tem um filho!...». O jornalista ainda insiste, afirmando que o caso nada tem de natural, mas não tem mais resposta de Elisa.
A gravidez de Marcela era já conhecida desde o estalar da polémica na Galiza, sendo até apontada como o catalisador de toda a história. Em inúmeros artigos especulava-se sobre se a gestação, acidental ou premeditada, não teria posto em marcha a tentativa de um “matrimónio simulado” como forma de salvar a honra de Marcela. Apesar de a imprensa portuguesa – e em particular o JN – ter tomado o caso por um lado mais benevolente, não devemos esquecer-nos do primeiro interesse de tais notícias: provocar grande sensação, vender jornais. Prova disso foram as versões rocambolescas que, dias seguintes, apareceram nas suas páginas, onde a suposta parteira de Maria Henriqueta anunciava que Marcela tinha dado à luz sendo virgem. Ou, numa versão alternativa, que Elisa, muitas vezes identificada como “hermafrodita”, era afinal a outra progenitora (biológica, entenda-se) da criança.
O resto da história é sabido. A absolvição de Elisa pela justiça portuguesa, conhecida por altura do nascimento de Maria Henriqueta, abria a porta ao cumprimento do pedido de extradição para Espanha, onde a esperava uma pena pesada. É a primeira a embarcar para a Argentina, no final de Abril de 1902. Marcela viaja mais tarde, entre Setembro e Outubro do mesmo ano, estando a bebé já em melhores condições para suportar a viagem transatlântica.
Fonte: página de Facebook do Arquivo Distrital do Porto (03/10/2022).
Sabemos muito pouco sobre esses meses passados em tranquilidade no Porto desde a libertação em Agosto até à partida para a América do Sul. É provável que Marcela trabalhasse como costureira, talvez no Café Lisbonense, onde tinha sido bem acolhida na chegada à cidade. No assento de baptismo de Maria Henriqueta, o documento agora descoberto no Arquivo Distrital do Porto, Marcela é dada como «solteira» e «proprietária» (!), morando na rua de Monte Bello, na freguesia do Bonfim, uma zona bastante pobre da cidade onde a classe operária se amontoava em casas apertadas e nas famigeradas “ilhas”. São padrinhos de baptismo Henrique Gonçalves (o que provavelmente explica o nome dado à criança), empregado comercial, e Maria Fernandes, ambos residentes no centro da cidade. Elisa, por razões óbvias, não vem referida no documento.
Juntando estes dados aos que já conhecemos, não será difícil imaginar uma vida, apesar de mais tranquila, de grandes dificuldades económicas. A profissão de professoras da instrução primárias que ambas tinham em Espanha revela-se de difícil prática num país estrangeiro. Ademais, a notoriedade do caso, depois de satisfeita a voraz fome de escândalo do público, apenas servia para complicar a busca por um emprego estável e bem remunerado. De qualquer forma, ambas sabiam que, mais tarde ou mais cedo, a polícia portuguesa teria de dar cumprimento ao pedido de extradição, pelo que ficava completamente frustrada o sonho, que talvez alimentassem quando cruzaram a fronteira, de começar uma vida nova em Portugal.
No entanto, não é de menosprezar a importância deste tempo passado no Porto, em que estas duas mulheres* e a sua filha bebé se tornaram na mais conhecida representação à época de uma família não convencional e, pela sua visibilidade pública, percursora na homoparentalidade. A nova descoberta arquivística aquece-nos a esperança de existirem ainda, nos jornais, nos registos oficiais, em correspondência privada, outras pistas e testemunhos por revelar sobre esta história de amor e resistência com mais de 120 anos.**
* Não podemos contar a história de Elisa e Marcela sem considerar a hipótese de Elisa, pelas identidades masculinas que assumiu, ter sido um homem trans. A distância do tempo e a opacidade das fontes não nos permitem para já a certeza de saber se Mário, a identidade com que entrou na igreja ao lado de Marcela, seria apenas uma personagem com que se apresentaria em público de forma a passar por “respeitável” aquela união, ou se, de facto, revelaria a sua verdadeira identidade de género. A segunda hipótese ganha força se considerarmos realmente a viabilidade da primeira: com o casamento e a gravidez de Marcela, não havia forma de fazer desaparecer Mário e voltar simplesmente como Elisa mais tarde; a identidade masculina era um compromisso de vida. Ainda assim, mantemos, para já, a primeira tese como a mais comumente aceite.
** A principal fonte a que recorro é o livro Elisa y Marcela, amigas y amantes, de Narciso de Gabriel. O autor dedica um capítulo final aos sucessores de Maria Henriqueta e a algumas hipóteses especulativas sobre a vida das três na Argentina.
Pedro Leitão