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"Existimos, ponto. Como qualquer outra família, seja ela composta da forma que for."

Pai pra toda a obra

O dezanove.pt esteve à conversa com Gonçalo de Oliveira, actor, repórter, homossexual, activista LGBTIQI+, pai do Duda e criador do Blogue “Pai pra Toda Obra”, canal de partilha sobre a experiência desta família ao longo do processo de adopção homoparental masculina em Portugal

Gonçalo partilha com o dezanove.pt um pouco sobre os frutos do sucesso deste projecto online, da realização do seu sonho em ser pai por dentro do processo de adopção homoparental masculina assim como algumas das dificuldades percebidas por uma família homoparental num país cada vez mais inclusivo ao nível das matérias jurídicas sobre a sexualidade e género, mas com a preservação de uma cultura familiar marcadamente binária e heteronormativa nos serviços e instituições públicas.

Vejamos o que o “Pai pra Toda a Obra” nos diz.

 

dezanove: Como surgiu a ideia do Blogue “Pai pra toda Obra”? Que expectativas tinhas quanto a este projecto?
Gonçalo: Quando o Duda chegou, eu costumava partilhar, nas minhas redes sociais, algumas frases engraçadas ou emotivas que ele dizia. Eram coisas muito inesperadas, para uma criança de quatro anos e, além disso, ainda mais inesperadas por se tratar de uma criança que chega a uma família pela via da adopção, cujas histórias que conhecemos são, muitas vezes, bastante desafiantes. Felizmente, eu não passei por essa experiência.
Então, quem nos lia, começou a incentivar-me a apontar tudo o que dizia ou a escrever um livro ou algo para que pudesse ser mostrado o quanto as coisas estavam a correr bem. E isso fez-me ir amadurecendo a ideia e cheguei à conclusão de que havia três questões na nossa história que valia a pena serem partilhadas: a parentalidade pela via da adopção, a parentalidade exercida exclusivamente no masculino, a solo, na altura (o pai Miguel conheceu-nos mais tarde) e a homoparentalidade.

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A ideia era partilhar a boa experiência ao longo de todo o processo (antes da chegada) e todo o processo de integração, esclarecer dúvidas e eliminar mitos que, habitualmente, estão associados aos processos de adopção e cuja experiência me mostrou serem isso mesmo, mitos. No fundo, a expectativa era a de passar informação correcta e esclarecer as pessoas para quem este tema fosse importante. 

Depois de dois anos a amadurecer a ideia, acabei por decidir que, efectivamente, eram temas que precisavam de ser abordados e não havia ninguém a fazê-lo e então decidi avançar e lancei o blogue no dia 19/03/2021, em directo, no programa "Júlia".
A realidade superou amplamente as minhas expectativas iniciais. Tenho recebido centenas de mensagens de todos os géneros: Pessoas que foram adoptadas, pessoas que receavam o processo e que, pela minha experiência, decidiram avançar, pessoas que não tinham a menor noção de como o processo funciona e se elucidaram. A maior e melhor das surpresas: ao fim de cinco meses não recebi uma única mensagem de ódio e recebo, diariamente, dezenas de mensagens de imenso carinho e admiração. 

 

A maior e melhor das surpresas: ao fim de cinco meses não recebi uma única mensagem de ódio e recebo, diariamente, dezenas de mensagens de imenso carinho e admiração. 

 

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Como descreves o processo de adopção do Duda? Que dificuldades foram percebidas?
Durante toda a vida quis ser pai pela via da adopção e, por isso, havia algumas coisas que já sabia. Quando iniciei o processo, dediquei-me a estudar mais profundamente, todo o funcionamento e todas as fases por que passa todo o processo quer durante o período em que quem se candidata tem alguma intervenção, quer nos momentos em que, da nossa parte, "tudo está feito" e resta apenas esperar. Esta pesquisa permitiu-me perceber o porquê de os tempos de espera serem alargados, quais as principais razões para que isso aconteça, entre vários outros detalhes.
As equipas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) que geriram o meu processo foram sempre de uma disponibilidade notável, fizeram-me sentir sempre que este era um trabalho conjunto que deveríamos encarar em equipa, por forma a garantir o maior sucesso na futura adopção. Foi com o seu apoio que entendi as várias fases do processo, a comunicação foi sempre muito transparente, muito realista, muito assertiva e isso ajudou-me na gestão da ansiedade que um processo destes gera, naturalmente. Senti-me, sempre, muito apoiado.
A maior dificuldade que poderei assinalar prende-se, exactamente com a gestão de expectativa e da ansiedade. Mesmo sabendo que a espera pode ser longa, temos sempre a esperança (de forma inconsciente) que connosco seja diferente e que algo aconteça e permita a chegada rápida da criança. Depois a realidade mostra-nos que o tempo vai passando e só nos resta aguardar. E esta situação leva-nos a outra questão: Como gerir a vida, quando estamos à espera de um filho que não sabemos quando chegará? Questionamo-nos sobre se devemos fazer aquela viagem ou não, sobre se devemos mudar de emprego ou não, sobretudo o que, de alguma forma, possa vir a ter implicações no processo.

 

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Que estereótipos e preconceitos desafiam nos dias de hoje uma família homoparental?
Os estereótipos estão espalhados por todo o lado, em quase todas as situações do quotidiano. E, curiosamente, são muito mais enraizadas nessas "pequenas" situações do que no preconceito acérrimo das pessoas, como poderíamos esperar. 
Vivemos numa sociedade heteronormativa que, por isso mesmo, assume essa normatividade como se de uma certeza absoluta se tratasse. E daí decorre que as famílias homoparentais e, em particular as crianças, sejam constantemente confrontadas com "modelos standard" onde é suposto caber toda a gente. Há manuais escolares que no capítulo "Família", abordam o tema a partir do modelo pai e mãe, as fichas de inscrição na escola ou em academias de desporto ou cultura, pedem nome do pai e nome da mãe, continua a explorar-se coisas tão básicas e inúteis como árvores genealógicas e assume-se a típica árvore de pai/mãe, avós paternos e avós maternos. Enfim, uma multiplicidade de questões com que nos confrontamos no dia-a-dia.
Além destas situações mais burocráticas, em ambiente externo ao ensino e actividades lúdicas ou pedagógicas, há sempre quem fale, na rua, num transporte público sobre a mãe, como se chama a mãe, onde está a mãe, etc. (no nosso caso, claro). Esse confronto gera, naturalmente, uma constante necessidade de explicar que o Duda não tem mãe, mas sim dois pais. Claro que nem tudo isto vem de um lugar de preconceito, mas vem sempre da falta de interiorização da sociedade que há múltiplos formatos de família e que é esse trabalho que pretendemos fazer - ou ajudar a fazer - com o "pai pra toda a obra".

 

Associas alguma espécie de transtorno experienciado pelo Duda por ser filho de uma relação homoparental?
A palavra transtorno pode ter várias interpretações. Se estamos a falar de algum tipo de trauma estrutural, a minha resposta é peremptoriamente que não. Mas se falarmos do transtorno - ou do peso acrescido - que significa para uma criança ter que explicar, várias vezes, a sua estrutura e modelo familiar, naturalmente que não é uma situação agradável, que causa desconforto pelo que encerra de necessidade de justificar a sua existência, a existência da sua família, quando percebe que as crianças no seio de uma família heteroparental não sentem. Não deixa, por isso, de ser um peso adicional.

 

Como qualificarias o ambiente escolar do Duda? E o desempenho dos profissionais de educação em questões relativas à diversidade de género e sexual, tende a ser inclusiva ou abusiva? 
Já tivemos experiências diferentes em duas escolas. Numa delas, a experiência foi muito difícil, com profissionais muito impreparados e com uma notável falta de sensibilidade. Foi uma experiência muito dura. Na escola actual, a experiência tem sido muito positiva, o Duda vive um ambiente escolar muito saudável, onde não já não tem nenhuma necessidade de explicar a sua realidade familiar porque todas as pessoas a conhecem e respeitam. As  profissionais de educação são pessoas atentas, disponíveis para fazer mais e melhor e, em particular, a professora trabalha em equipa connosco para garantir que o que faz inclui todas as crianças da turma. No final do ano passado, o pai Gonçalo foi eleito representante das famílias das crianças da turma, unanimemente. Claro que isso nos enche de orgulho e nos tranquiliza por sabermos que o Duda está numa escola que tende, claramente, a ser inclusiva.

 

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O que consideras que faz falta cumprir no caminho da homoparentalidade em Portugal?

Penso que falta informação e formação. Da sociedade em geral, mas, muito em particular, da comunidade educativa. E acredito que todas as famílias arco-íris podem e devem fazer esse papel, diariamente, junto das escolas. Não se mudam mentalidades sem uma remodelação profunda do pensamento, da forma como são vistas as famílias, da linguagem que usamos nas frases mais simples.

Penso que falta informação e formação. Da sociedade em geral, mas, muito em particular, da comunidade educativa.

É preciso não ter que pedir licença para existir nem ter a necessidade de justificar a nossa existência. Existimos, ponto. Como qualquer outra família, seja ela composta da forma que for. E é na educação, na formação de pessoal docente e discente, de toda a comunidade escolar que reside o ponto de partida para que esta questão da "diferença" deixe de existir. Faz falta generalizar esta formação à comunidade educativa para assim garantirmos que, desde tenra idade, é isso que as crianças aprendem em ambiente escolar.

 

Entrevista de Daniel Santos Morais,

Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.

 

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