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Frederico Lourenço: “As grandes religiões mundiais são homofóbicas”

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Já tinha traduzido “Odisseia” e “Ilíada” e está agora na ribalta depois de publicar a tradução do original em grego para português dos quatro evangelhos do Novo Testamento. Seguir-se-ão mais cinco livros com as restantes escrituras do Novo e Velho Testamentos. O professor universitário Frederico Lourenço falou com o dezanove sobre o processo de tradução e a sua relação com Deus, o cristianismo e o judaísmo.

Em entrevista, explica ainda por que não se identifica com a teologia queer: “Não me parece possível, enquanto linguista que sou, reinterpretar as passagens condenatórias da homossexualidade de modo a torná-las inócuas ou gay friendly sem forçar o texto a dizer o contrário daquilo que ele, de facto, está a dizer”. “Estou a traduzir o texto exactamente como ele é, independentemente das minhas opiniões pessoais sobre o que esse texto diz”, assegura o também autor da trilogia de romances “Pode um Desejo Imenso”, “O Curso das Estrelas” e “À Beira do Mundo”.

 

dezanove: Como é que alguém que diz que deixou de ser católico praticante se lança nesta verdadeira odisseia de traduzir a Bíblia?

Frederico Lourenço: No contexto em que eu trabalho sobre a Bíblia, isto é, de uma perspectiva histórica e linguística, não é relevante que tipo de crença individual eu possa ter. Tenho simpatia pelo cristianismo e pelo judaísmo, mas não sou praticante de nenhuma dessas religiões.

 

A leitura da Bíblia teve alguma influência no "deixar" de ser católico praticante? Ou foram antes outras razões?

Há um conjunto vasto de razões, algumas delas bem difíceis de racionalizar. Não me parece que tenha sido concretamente o texto da Bíblia a desencadear esse processo. Começou por ser uma interrogação cada vez mais sem resposta, na minha cabeça, sobre se aquilo que Deus, existindo, quer de nós e que nos afiliemos em organizações religiosas como são aquelas que mais poder e influência tiveram e têm no mundo. Para mim há um fosso entre o Deus – em que, apesar de tudo, acredito – e a realidade das religiões. Não conseguiria, nesta fase da minha vida, definir-me sinceramente como cristão porque não me identifico com nenhuma denominação cristã. Tenho, pessoalmente, uma admiração profunda por Jesus de Nazaré, mas não sinto que isso me obrigue a seguir a linha do que a religião oficial impõe aos crentes.

 

Tenho, pessoalmente, uma admiração profunda por Jesus de Nazaré, mas não sinto que isso me obrigue a seguir a linha do que a religião oficial impõe aos crentes

 

As últimas traduções da Bíblia para português foram feitas por equipas de tradutores. Que vantagens e inconvenientes tem ou terá a tua obra ao assumi-la de forma individual?

Há várias maneiras de abordar a tarefa de traduzir a Bíblia. Hoje em dia privilegia-se o sistema da tradução em equipa, o que tem vantagens e desvantagens. Uma desvantagem é que as traduções em equipa tendem a afinar o seu diapasão pelo denominador comum da consensualidade mais conservadora. As traduções solitárias são, por definição, mais arrojadas porque o tradutor solitário só responde perante a sua própria consciência. Basta ver os caso recente do jesuíta Nicholas King, cuja tradução completa da Bíblia saiu em 2013. Tem, claro, de ter a coragem das suas convicções e estar seguro de que tem capacidade intelectual e académica para fazer esse trabalho. Como se trata, no meu caso, de fazer uma tradução a partir do grego, estou seguro de que, como professor de grego há 27 anos nas Universidades de Lisboa e de Coimbra, tendo feito todo o meu percurso universitário (licenciatura, doutoramento, agregação) na área do grego, tenho capacidade linguística para o fazer. Haverá sempre lugar para tradutores solitários da Bíblia, como haverá sempre lugar para traduções feitas por equipas. São coisas diferentes.

 

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Teve reacções negativas nomeadamente por parte da Igreja em relação à obra que se propõe realizar? 

Tenho recebido reacções bastante positivas da parte de muita gente: católica, protestante e de outras denominações. Tenho amigos que são padres católicos e que me falaram com generosidade deste trabalho. Há sempre pessoas que gostam mais; outras gostam menos. Felizmente ninguém é obrigado a ler a minha tradução: há outras Bíblias em português para ler.

 

Enquanto homossexual como encara as passagens que terá de traduzir, nomeadamente no Antigo Testamento, que estão na origem, de certa forma, do fundamento da homofobia das sociedades judaico-cristãs?

As passagens “incómodas” são até em ligeiramente maior número no Novo Testamento do que no Antigo, onde só há dois versículos a condenar a homossexualidade – isto partindo da interpretação actual da história de Sodoma e de Gomorra, de que não se trataria de uma história cujo principal enfoque fosse a homossexualidade. De resto, o facto de eu próprio ser homossexual não tem a mínima influência na abordagem ao meu trabalho de tradução da Bíblia: estou a traduzir o texto exactamente como ele é, independentemente das minhas opiniões pessoais sobre o que esse texto diz. Claro que a condenação bíblica da homossexualidade teve um peso brutal na perseguição e condenação à morte de homossexuais ao longo dos séculos. Isso parece-me uma das marcas profundamente negativas do judaísmo e do cristianismo, mas na verdade as grandes religiões mundiais são todas homofóbicas, está-lhes “na massa do sangue”.

 

O facto de eu próprio ser homossexual não tem a mínima influência na abordagem ao meu trabalho de tradução da Bíblia: estou a traduzir o texto exactamente como ele é, independentemente das minhas opiniões pessoais sobre o que esse texto diz

 

Nos finais do século passado surgiu a chamada teologia queer, que de certo modo se sustenta numa nova abordagem da Bíblia no que diz respeito à homossexualidade. O que acha desta forma de interpretar estas passagens da Bíblia?

Acho válida e legítima, mas pessoalmente não me identifico com ela. Não me parece possível, enquanto linguista que sou, reinterpretar as passagens condenatórias da homossexualidade de modo a torná-las inócuas ou gay friendly sem forçar o texto a dizer o contrário daquilo que ele, de facto, está a dizer. Sei que isso dói a muitas pessoas e, por isso, considero a teologia queer uma mais-valia no panorama mais vasto das novas leituras da Bíblia. No entanto eu, pessoalmente, não me revejo na teologia queer.

 

Para terminar, acha possível ser homossexual e ser aceite no seio da Igreja?

Penso que é perfeitamente possível ser “aceite” e algumas denominações cristãs têm-se esforçado para pôr em prática uma política de inclusão. Mas é uma questão que cada homossexual cristão tem de colocar a si próprio: cada um tem de fazer um processo mental e espiritual próprio, do qual poderá resultar a conclusão: “Sim, apesar de a aceitação de homossexuais, de casais homossexuais, de famílias homossexuais, etc. não ser plena e incondicional no seio da Igreja, eu sinto que pertenço”. Ou então chega-se à conclusão, como eu cheguei há bastante tempo, de que, mesmo acreditando em Deus, como é o meu caso, não é possível fazer essa quadratura do círculo. Cada pessoa homossexual tem de decidir por si.

 

Entrevista: Rui Oliveira Marques. Foto: Ricardo Almeida

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