Livros feministas: O Lápis Azul passou por aqui
Durante anos, certos livros foram lidos às escondidas em Portugal e escamoteados à polícia. Porque era proibido lê-los, mas também detê-los. O fim da instituição da censura só ocorre após a Revolução de 25 de Abril de 1974, com a aprovação da Constituição de 1976, que consagra no artigo 37.º a liberdade de expressão e informação e no artigo 42.º a liberdade de criação cultural.
Por quatro décadas, entre mandados de busca às livrarias, perseguição e ameaça a autores - especialmente a mulheres autoras -, o lápis azul da censura mostrou produzir mais de dez mil relatórios de leitura a livros de autores portugueses, lusófonos e estrangeiros, em edição original ou tradução, que entravam e circulavam em território nacional.
Considerados imorais, irreligiosos, subversivos, pornográficos, anti-sociais, revolucionários, de propaganda comunista, prejudiciais à segurança e os valores tradicionais do estado, os livros com ideias contrárias ao regime eram apreendidos, proibidos e queimados, limitando o horizonte mental dos portugueses e afastando-os das transformações políticas, culturais e sociais que se faziam sentir no mundo.
Entre os múltiplos rostos, percursos e ideias censurados pelo Regime Fascista resgatamos a bravura de algumas obras femininas/feministas:
Decadência (1923) Judith Teixeira
Obra inaugural de Judith Teixeira (1888-1959). publicada em Março de 1923 é rapidamente alvo de uma polémica sobre a (i)moralidade da sua escrita vindo a ser confiscada e queimada junto com as obras de Raul Leal e António Botto. Apesar do escândalo, publicou mais dois livros de poesia, Castelo de Sombras (1923) e Nua. Poemas de Bizâncio (1926), e duas novelas publicadas sob título de Satânia (1927). Judith Teixeira escreve ainda uma palestra intitulada “De mim. Em que se explicam as minhas razões sobre a Vida, sobre a Estética, sobre a Moral” (1926), provavelmente o único manifesto artístico modernista de autoria feminina no início do século XX em Portugal.
O Segundo Sexo (1949) Simone Beauvoir
Publicado em 1949, em França, anos após a II Guerra Mundial, O Segundo Sexo – Ontologia composta por dois volumes – é considerado um dos textos mais importantes da teoria feminista. Beauvoir (1908-1986), filósofa e feminista francesa, procuraria nesta obra mostrar como a mulher é definida por diversos campos do conhecimento, como a biologia e psicanálise, denunciando os mecanismos do patriarcado e do capitalismo. Apesar da obra ter sido um êxito de vendas em 1956 entra para a lista de livros proibidos da Igreja Católica, sendo consequentemente proibida em vários países, entre os quais Portugal.
Minha Senhora de Mim (1971) Maria Teresa Horta
Minha Senhora de Mim foi o nono livro de poesia que Maria Teresa Horta publicou. Composto por 59 poemas, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais para desafiar o status quo patriarcal. Centrando-se na sexualidade das mulheres Maria Teresa Horta desconstrói a passividade sexual da mulher colocando-a no comando da acção sexual, desconstruindo também o carácter reprodutor do sexo feminino. Minha Senhora de Mim foi publicada, na colecção “Cadernos de Poesia”, das Publicações Dom Quixote, dirigidas por Snu Abecassis, sendo apreendida e acusada de ofensa “da moral tradicional da nação”.
As Mulheres do Meu País (1948-1950) Maria Lamas
Obra emblemática sobre as mulheres portuguesas, publicada por fascículos entre 1948 e 1950, Maria Lamas mostrava querer abalar a indiferença com que os portugueses encaravam os problemas das mulheres na época. Resultado de uma reportagem sobre as condições de vida das mulheres portuguesas, que a leva a palmilhar o país de norte a sul, do litoral ao interior, a conviver com mulheres de diferentes estratos sociais, esta é uma obra que oferece um retrato extraordinário e revolucionário do nosso país. Revelando os problemas ligados à condição feminina, como são os direitos políticos, as mães solteiras e a prostituição a obra viu ser Silenciada pela imprensa e perseguida pela política fascista do Estado Novo.
Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965) Natália Correia
Depois de ver sucessivos livros seus apreendidos pela Censura do Estado Novo, Natália Correia aceitou o convite do visionário editor da Afrodite, Fernando Ribeiro de Mello, para organizar esta Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Reunindo «a poesia maldita dos nossos poetas», «as cantigas medievais em linguagem actualizada», «dezenas de inéditos» e «a revelação do erotismo de Fernando Pessoa», a obra causaria o escândalo e sua apreensão pela PIDE. julgada em Tribunal Plenário como «ofensiva do pudor geral, da decência e da moralidade pública e dos bons costumes», um processo que se arrastaria durante anos.
Apenas Mulher (1944) Maria Archer
Maria Archer (1899-1982), romancista, observadora e narradora dos problemas que atingiam a mulher da sua época, uma voz insubmissa durante a ditadura do Estado Novo, foi censurada, obrigada ao exílio e apagada da História da literatura portuguesa. Em Apenas Mulher (1944), obra considerada escandalosa, acompanhamos o percurso de Esmeralda, uma jovem que vai do interior para a capital fazer companhia à “madrinha”, assumindo os trabalhos domésticos com a promessa de uma formação em costura e em dactilografia. Neste romance a autora mostra como a sociedade é hostil à mulher, não tendo oportunidade de acesso ao ensino e autonomia de vida.
Pigalle (1965) Nita Clímaco
Pigalle foi publicado em 1965, o segundo romance publicado de Nita Clímaco, pseudónimo de Maria da Conceição Clímaco Tomé, jornalista e escritora erradicada em França. A novidade da obra, no panorama literário português, está na transposição da experiência da emigração portuguesa em França para a literatura portuguesa pela primeira vez. UMA realidade censurada pelo regime. a autora escreveu cinco romances (Falsos Preconceitos, 1964; Pigalle, 1965; O adolescente, 1966; A salto, 1967; A Francesa e Encontros, 1968), tendo os três primeiros sido censurados.
Vinte Anos de Manicómio (1950) Carmen Figueiredo
Vinte Anos de Manicómio (1950), da quase desconhecida escritora portuguesa Carmen de Figueiredo, centra-se na vida amorosa de Lourdes Bento que, desde cedo e contra a vontade do pai, manifesta uma natureza luxuriante e sexual. A autora explora a relação de dominação patriarcal do pai em relação à filha trazendo a público uma estrutura de descrições sexuais consideradas chocantes para uma mulher na época. Não só Vinte Anos de Manicómio mas também Famintos (1950) foram obras censuradas pelo regime devido ao seu teor erótico.
Novas Cartas Portuguesas (1972) Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa
Em Novas Cartas Portuguesas, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa desafiam a ditadura e a ordem patriarcal, as convenções sociais do país. Na obra são denunciadas as várias opressões a que as mulheres estavam sujeitas, o sistema judicial que perseguia as mulheres escritoras, bem como a Guerra Colonial e a violência fascista.
Foram citadas apenas uma dúzia de obras num total de 900 livros que foram censurados pelo regime fascista do Estado Novo. De entre os livros proibidos da Biblioteca da Censura, poderíamos ainda recordar nomes como Jorge Amado, Orlando da Costa, Vergílio Ferreira, Daniel Filipe, Tomás da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes, Manuel Teixeira Gomes, Egito Gonçalves, Teixeira de Pascoais, Cardoso Pires, Graciliano Ramos, Alves Redol, Santareno, Miguel Torga, Louis Aragon, Italo Calvino, Mikhail Cholokhov, Colette, Joseph Conrad, Friedrich Engels, William Faulkner, Maksim Gorkii, Piotr A. Kropotkine, Lenine, André Malraux, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, John Reed, John dos Passos, Françoise Sagan, Leão Tolstoi, Roger Vailland, ou Simone Weil.
Passaram cinquenta anos desde que Portugal se livrou de um regime ditatorial que reprimia a liberdade de expressão, pensamento e criação artística e/ou literária. Ainda assim, os ecos da perseguição e da censura continuam por aqui. Exemplo breve é a agenda política de partidos conservadores e de extrema-direita que tentam o retrocesso e aprofundamento democrático da república portuguesa. As cruzadas da ideologia de género contra o desenrolar dos princípios de igualdade e não discriminação retumbam entre as bocas de políticos e seus apoiantes que agora se viram contra obras que desafiam a manutenção do sistema hegemónico, como são aquelas de temática LGBTQIA+.
Recordamos a manifestação contra a estreia do livro infanto-juvenil “No Meu Bairro”, de Lúcia Vicente, uma obra que abordando a diversidade de género, familiar, racial ou de credo religioso, foi alvo de assalto por um protesto intimidatório de militantes radicais que apontavam a “degeneração” e” depravação” que o livro representava para as crianças. Uma manifestação que é um exemplo claro do preconceito e desrespeito pela liberdade de expressão e autodeterminação dirigida a pessoas LGBTQIA+ no país. Um protesto feito por um conjunto de homens que vêem nas temáticas de género e orientação sexual o medo e afronta aos seus direitos e que por isso, credibilizam os antigos moldes de censura e repressão fascistas.
Mais recentemente, a apresentação do livro “Identidade e Família”, o qual junta a nata do ultraconservadorismo lusitano numa cavalgada radical contra o aborto, a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que os autores chamam de “adversários da família”, a alegada “ideologia de género” e a suposta “cultura da morte”, mostra não só a incapacidade de uma parte da população em se adequar à modernidade, aceitar que há várias formas de amor, de vida, de família, como revelam o ódio contra vidas e famílias reais de 2024.
Um estudo recente do ISCSP, a propósito dos 50 anos do 25 de Abril, mostra a maior apreciação dos portugueses por formas de governo não democráticas e autocráticas. Assistimos hoje a novos desafios que comprometem a democracia portuguesa e a tão preciosa liberdade de pensamento, expressão e criação cultural. Mostra ser por tudo isto importante recordar a história, a censura, a perseguição, o controlo por meio do medo infligido a todos aqueles que desafiaram a monotonia do conservadorismo imposto. Não esquecemos todas as vozes insubmissas que ainda silenciadas deixaram uma marca para o triunfo da liberdade de expressão e criação artística no país. Lembramos que a democracia é feita de diversidade e diferença.
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.
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