Lutar de forma informada: reflexões sobre características sexuais
Numa altura em que se assiste ao crescimento da extrema direita um pouco por todo o mundo, é importante que nos informemos correctamente sobre questões e temas importantes, que frequentemente são instrumentalizados por forma a difundir-se informações erradas, instigar-se preconceitos, desconfianças e ódio entre as pessoas.
É importante que nos unamos e, de forma informada, lutemos contra movimentos, discursos e acções que colocam em risco a existência de muites de nós.
Especificamente, nos EUA, Donald Trump tomou posse a 20 de Janeiro e desde então anunciou algumas medidas e adoptou discursos que põe em causa os direitos de pessoas LGBTI+. Uma ordem executiva intitulada “Defender as mulheres do extremismo da ideologia de género e restaurar a verdade biológica no governo federal", preconiza, entre muitas outras atrocidades, que “[é] política dos Estados Unidos reconhecer dois sexos, masculino e feminino. Esses sexos não são mutáveis e são baseados em realidade fundamental e incontestável”. Define-se ainda - de forma errada, nessa ordem executiva, os conceitos de “feminino”, “masculino”, “homem”, “mulher”, entre outros. Haveria muito para dizer e reflectir sobre esta ordem executiva, mas foquemo-nos em algo que é crucial e que serve de base para muitas reflexões:
NÃO, O SEXO NÃO É DICOTÓMICO.
Sim, historicamente categorizamos as pessoas, quanto às suas características sexuais de duas formas, que são mutuamente exclusivas, mas a verdade é que estas categorias (feminino e masculino) são limitadas e não permitem dar conta da diversidade existente. E sim, esta diversidade existe desde sempre. Não é uma invenção da “ideologia de género”.
Se pensarmos noutras categorias que conhecemos, noutros rótulos, noutros termos que nomeiam o que quer que seja, percebemos que tudo isso são construções sociais. O conhecimento e aquilo que se pensa ser verdade são apenas produtos do processo social e das interacções nas quais as pessoas estão envolvidas, sendo relativos e dependentes do tempo e da cultura em que se vive. No entanto, efectivamente, estes conhecimentos difundidos e, muitas vezes desactualizados, têm consequências reais para as vidas das pessoas, nomeadamente para pessoas intersexo, impondo alternativas que estão, em si mesmas, formatadas e constrangidas pelas convenções e critérios da “verdade”.
Sim, pessoas intersexo existem e não há nada de errado com elas. Falamos, simplesmente, de uma não conformidade com os critérios culturalmente definidos de normalidade corporal (pode ser ao nível dos cromossomas, genitais, gónadas, hormonas…). Ainda assim, os seus corpos, por não se encaixarem em padrões definidos, acabam patologizados e alvo de intervenções médicas desnecessárias, que assentam realmente em critérios estético-culturais. Tal como Judith Butler defende, é indispensável repensar a naturalidade do sexo, uma vez que, os critérios de classificação do sexo como masculino ou feminino também são culturais. Portanto, o corpo masculino ou feminino é compreendido como tal por convenção cultural, que propõe os parâmetros para identificá-lo como pertencente a um ou outro sexo.
Segundo Anne Fausto-Sterling, os critérios utilizados por profissionais de saúde na determinação do sexo têm por base decisões sociais. De facto, a medicina não funciona no vácuo social. Ainda assim, parece haver a ideia de que os assuntos que são da medicina não se relacionam com questões sociais, isto é, as questões médicas, biológicas assumem um carácter puramente biológico que nada tem a ver com aspectos sociais. No entanto, se existisse realmente esta separação, então pessoas intersexo não eram vistas como doentes porque a própria biologia, com todos os avanços científicos observáveis, questiona este sistema binário rígido quanto ao sexo e demonstra a complexidade do corpo humano. A patologização em torno das questões intersexo existe porque, socialmente, só existem duas categorias relativas às características sexuais, sendo que a sociedade define as características e atributos relativos a cada categoria, nomeadamente a forma como a genitália deve ser; se existisse um outro sistema, que compreendesse as diferentes variações, então, variações intersexo não seriam patologizadas.
Sara Lemos