MADO 2022: apesar da Direita, o Orgulho voltou a reclamar as ruas de Madrid
Depois de dois anos de pausa forçada pela pandemia, a 9 de Julho mais de 600 mil pessoas voltaram a marchar pelos Paseos del Prado e de Recoletos na manifestação que é o ponto alto da Semana do Orgulho LGBTIQ+ de Madrid, considerado o maior evento queer na Europa.
A primeira manifestação do Orgulho de Madrid (MADO) aconteceu em 1978, apenas três anos passados da morte de Franco e do início da transição para a democracia, com sete mil pessoas a reivindicarem na rua os seus direitos para uma nova era de liberdade. Desde então, esse número multiplicou-se muitas vezes, tendo atingido o seu máximo em 2017 quando 3,5 milhões de pessoas vieram à capital espanhola para o World Pride e encheram as ruas do centro para cantar juntos “A quién le importa”, o temazo intemporal da Alaska elevado a hino do orgulho madrileno. O MADO, que alia protesto e festa, reclamando o espaço público como palco dúplice para a luta política e para a celebração em comunidade, tem na Chueca o seu quartel-general. A partir dos anos 1980, este bairro de má fama converteu-se num lugar seguro para os seus novos moradores LGBTI que, com os anos, fizeram dele um pedaço de cidade livre, diverso e inclusivo. A rua é um elemento fundamental do evento e na edição deste ano, que decorreu entre 1 e 10 de Julho, motivou uma dura polémica entre a organização e os partidos da Direita.
Num tempo em que se muscula o discurso de ódio LGBTIfóbico e aumentam os ataques a membros da comunidade, convocou-se logo no primeiro dia do MADO 2022 uma vigília na Plaza Cibeles em memória de Samuel Luiz, um ano depois da morte por espancamento público deste jovem de 24 anos. Assassinado à vista de todos, Samuel é a recordação da importância da rua para as manifestações do Orgulho. Pela enorme visibilidade e mediatismo que confere à causa, mas também pelo valor simbólico que vem com a ocupação de um espaço comum, a manifestação na rua é um dos aspectos que mais irrita a Direita espanhola e para a qual esta tem orientado a sua estratégia de enclausuramento e ocultação do movimento. Soubemos recentemente que o alcalde José Luis Martínez-Almeida, o actual presidente do Ayuntamiento (a câmara municipal) do Partido Popular (de direita), chegou a propor a mudança dos festejos para a IFEMA, o parque de exposições de Madrid, situado a 10 quilómetros do centro. Na última campanha eleitoral, já o candidato do Vox (partido de extrema-direita) tinha sugerido deslocar o Orgulho para a Casa de Campo, um imenso parque florestal e conhecido local de cruising.
É importante recordar que o Ayuntamento é governado desde 2019 por uma coligação entre o PP e o Ciudadanos (centro-direita) com o apoio parlamentar do Vox. Apesar de a candidata mais votada nessas eleições ter sido Manuela Carmena, que encabeçava uma coligação de esquerda, uma aliança inédita permitiu a formação de uma alternativa governativa liderada pelo PP. O entendimento da Direita quanto à reprovação do Orgulho também se tem robustecido com o tempo. Este ano, satisfazendo uma pretensão do Vox, Almeida recusou hastear a bandeira arco-íris nos principais edifícios camarários, em particular no Palácio de Cibeles, um dos ícones arquitectónicos da cidade, escudando-se num acórdão recente do Tribunal Supremo. O partido de extrema-direita tem proclamado à saciedade que só bandeira nacional pode representar os espanhóis e que nenhum “lobby” deve poder hastear a sua insígnia em edifícios do Estado. Uma posição semelhante por parte do PP ficou bem clara na apresentação do programa do MADO no final de Junho, quando dois dos seus eleitos municipais abandonaram a cerimónia durante o discurso de uma activista que protestava contra a decisão de Almeida. À saída, um deles explicou à imprensa que a bandeira “se lleva dentro, no hay que llevarla fuera” – bem dobrada e guardada no armário, poderíamos acrescentar.
Ainda assim, a colagem do PP ao Vox tem desagradado ao seu parceiro de coligação, o Ciudadanos, com a vice-alcaldesa Begoña Villacís a fazer uma leitura menos restritiva do acórdão do Supremo Tribunal, ordenando que as bandeiras fossem hasteadas nas juntas dos distritos municipais (o equivalente às freguesias portuguesas) governadas pelo seu partido. Foi também ela a única representante do Ayuntamiento a estar presente em várias cerimónias do MADO, como no descerrar da placa de homenagem a Raffaella Carrà, a diva da televisão, da pop e ícone LGBTI que faleceu há um ano e que agora dá nome a uma praça no coração de Madrid, no que representa uma conquista permanente do espaço público para a comunidade.
Este ano, para além da Manifestação Estatal, que percorreu uma das artérias nobres da cidade, foram montados dois palcos na Chueca e outros dois na Gran Via onde se realizaram concertos, performances, concursos, etc. Fechado o programa e a poucos dias do início das celebrações, o alcalde Almeida provocou um novo momento de crise na organização ao não conceder a licença especial de ruído para o evento, uma autorização excepcional que permitiu ao MADO durante o consulado de Manuela Carmena montar grandes celebrações nas principais artérias da cidade. A imposição de um limite máximo de decibéis fez com que o som das colunas dos palcos apenas chegasse às primeiras filas do público. E isto aplicava-se não apenas aos concertos mas também aos discursos e à leitura do próprio manifesto do Orgulho, que este ano foi proferido por Chanel Tenrero, a representante espanhola no festival da Eurovisão. No próprio dia em que Chanel se preparava para discursar, Almeida foi questionado pela imprensa sobre a sua presença no evento. O alcade respondeu que, à semelhança dos anos anteriores, não fazia intenção de comparecer. A um grupo de apoiantes seus que encontrou na rua nesse momento, Almeida atirou um “Viva San Fermín!”, referindo-se às festas da cidade de Pamplona que decorrem nesta altura e que são conhecidas pelas sangrentas largadas de touros. É um episódio ilustrativo da simpatia que o actual executivo do Ayuntamento – que, note-se, figura oficialmente como “parceiro principal” do MADO – tem por um dos eventos que mais gente e dinheiro traz à cidade.
Este ponto é particularmente importante para compreender a determinação ideológica da Direita. O Orgulho converteu-se num dos eventos mais lucrativos de Madrid que atrai a colaboração de muitas empresas e marcas internacionalmente conhecidas. É também um dos pontos altos do ano turístico da região. As estimativas para a edição de 2022 falam em 2 milhões de visitantes e 400 milhões de euros de receitas para a cidade. Não obstante as frequentes acusações de pinkwashing de que o evento é alvo, em que o interesse económico explica a participação oportunista de muitos negócios não particularmente dedicados à causa, o evento tem o apoio de duas das principais associações activistas do país, a FELGTBI+ e a COLGAM. O seu importante impacto económico não parece, no entanto, sensibilizar o PP e o Vox. Já depois de se conhecerem os números deste ano, a presidente da comunidade autónoma de Madrid, Isabel Diaz Ayuso, apontada como uma possível futura líder do PP, lamentou o “sequestro mediático” que o Orgulho e o 8M (manifestações do Dia da Mulher) têm adquirido ao longo dos anos e que agora, critica Ayuso, se estende por um mês inteiro. Ora, se nem aqui a Direita consegue ver o efeito virtuoso do evento, não será então certamente pela sua dimensão política, social ou cultural que tal ocorrerá.
Porque a rua é instrumental na livre expressão da pluralidade de identidades, dos afectos e das aspirações da comunidade, e é no asfalto que se combate a ideologia do armário e quem a promove.
Mas não lhes será dada a satisfação de mancharem as celebrações do Orgulho e Madrid resistirá a qualquer tentativa de o retirar do centro. Porque a rua é instrumental na livre expressão da pluralidade de identidades, dos afectos e das aspirações da comunidade, e é no asfalto que se combate a ideologia do armário e quem a promove. Fechados em casa nunca nos ouvirão cantar, a plenos pulmões e a uma só voz, “yo soy así, y así seguiré, nunca cambiaré!”
Pedro Leitão