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Mais vale cair em graça, do que ser engraçado

RAP João Barbosa

 

Numa crónica anterior, a propósito de Paulo Rangel (a minha estreia para o dezanove.pt) referia como era importante a comunidade LGBTQIA+, em primeiro lugar, reconhecer que, quer queira, quer não, a sua existência é uma realidade política; e, em segundo lugar, em virtude disso mesmo, que é absolutamente imprescindível que se consciencialize politicamente, vote em quem realmente a defende e invista em aceder aos locais de poder, para deixar de estar dependente da intermediação nos não-LGBTQIA+ e da sua boa-vontade, para que os seus direitos sejam defendidos.

 

Participar na política e aceder aos locais de poder implica também ter voz e participar no debate. O que temos visto constantemente é gente não-LGBTQIA+ a mandar «postas de pescada» sobre a comunidade LGBTQIA+, mas nunca vemos gente LGBTQIA+ a dar a sua própria opinião, a falar de si na primeira pessoa, excepto quando entrevistada - normalmente, a propósito de alguma situação infeliz em que alguém da comunidade foi vítima de mais um ataque ou em algum coming out mais ou menos forçado.

 

Vemos esse constante comentário sobre a comunidade LGBTQIA+ e sobre os temas que a ela dizem respeito intermediado por quem não faz parte da comunidade, entre políticos e comentadores de Direita, mas também em gente à Esquerda. Nem sempre, nem com conhecimento de causa, nem informação - e, aparentemente, nem boa vontade para entender. Mesmo para a Esquerda, a quem a comunidade LGBTQIA+ tudo deve, em Portugal - e nem a toda, de igual maneira, note-se - a comunidade LGBTQIA+ é importante, mas não ao ponto de falar em voz própria, aparentemente. Tem de ter sempre o intermediário, o tradutor. Ora quem gosta de ler sabe que traduzir é também autorar (muitas vezes, para lá do próprio autor). Este problema de falta de representatividade, em Portugal, seja à Esquerda ou à Direita - e o problema em que isso se traduz - nem sequer se limita à comunidade LGBTQIA+, aliás, mas adiante.

 

A total ausência de pessoas da comunidade LGBTQIA+ (assumidamente da comunidade LGBQTIA+) do espaço de debate político desemboca neste estado-da-arte por todos nós bem conhecido: entre os que activamente querem exterminar a comunidade (até já temos professores universitários que se sentem confortáveis para, desafiadoramente dizerem em televisão que a comunidade LGBTQIA+ é uma organização terrorista e pedófila de assassinos em série contra a qual a violência já devia ter sido aplicada) até aos cishéteros que têm medo de ser chamados de «wokes» (fora os que, sendo da comunidade, vão fazendo o papel de Pai Tomás, como alguns que eu menciono na peça do dezanove.pt acima citada), a comunidade LGBTQIA+ aparece falada nos debates como “o grande ausente”. É uma espécie de parente que emigrou para França ou para o Brasil, ou que já faleceu; que volta e meia vem à conversa, mas nunca está presente para participar.

 

A última crónica de Ricardo Araújo Pereira (“A atracção sexual que não ousa dizer o seu nome” - a falta de noção começa no título) é o mais recente exemplo do que acabo de descrever. Desta feita, porque as definições das sexualidades do projecto ABCLGBTQIA+ não mencionam a palavra "sexo" e falam «apenas» em afectos, Ricardo Araújo Pereira discorda, sente-se confuso e acha que isso merece uma crónica daquelas. Aquilo cheira-lhe a «woke» demais.

 

Já não bastava o palco que o Observador dá a personagens tenebrosas, nas suas páginas de «opinião», agora temos uma pessoa de Esquerda cishétero a dizer às pessoas da comunidade LGBTQIA+ o que elas são e o que «faz sentido elas serem ou não serem» - não vão as pobres almas cishétero ficar muito baralhadas. Sejam práticos, pessoal - não compliquem, que os cishétero até são porreiros e toleravam-vos. Já nem vos batem, vejam lá. Progresso - conheces?

 

À força de querer ser engraçado, Ricardo Araújo Pereira, que tantas vezes nos fez rir (sim, note-se, eu gosto do Ricardo Araújo Pereira - o que não me tolda as vistas para reconhecer que ele foi infeliz, desta vez) apenas consegue escrever um texto chato e ignorante, que parece estar preso a uma definição de “sexualidade” que é anterior ao famoso Relatório Kinsey, publicado em 1948 pela equipa de investigadores liderada por Alfred Kinsey, e a partir do qual a definição de “sexualidade” passou a incluir mais do que simplesmente o acto da cópula em si, mas também toda a componente comportamental e afectiva associada

 

Com isto, Ricardo Araújo Pereira é mais uma das vozes - ainda por cima, de Esquerda, repito - a dar consistência a uma narrativa tresloucada da Direita que, à falta de ter um plano realmente útil para o país, compra o argumentário da Extrema-direita estrangeira mais bacoca e trauliteira, arrastando-nos para debater moinhos de vento tomados por dragões, em vez de questões reais e sérias; e assim se enche o ego daqueles que dizem “eu até nem tenho nada contra os gays, mas eles agora já estão a ir longe demais, com estas manias das letras e das casas-de-banho para todos os sexos que eles inventam”. 

 

Eu podia até lembrar ao Ricardo Araújo Pereira que o próprio Sigmund Freud já tinha lançado pistas sobre a dimensão psico-afectiva da sexualidade humana, lá atrás, no início do século XX (lá para os 1905s), mas não quero sobrecarregar o pobre humorista com zero méritos para falar de sexualidade humana - especialmente da alheia - com factos, História, Ciência… 

 

Mas que diabo… o primeiro filme que retrata a homossexualidade de modo positivo e não como uma patologia ou um crime (“Anders als die Andern“, em que aparecia o actor que, mais tarde, viria a interpretar a personagem que veio dar origem ao famoso Joker, do Batman), do Institut für Sexualwissenschaft e do Wissenschaftlich-humanitäres Komitee, do Magnus Hirschfeld, é de mil novencentos e dezanove, caramba. E mesmo ele já deixava então a adivinhar que quando falamos de homossexualidade não estamos meramente a falar de sexo.

 

Mas se em relação a Kinsey o Ricardo Araújo Pereira está com um atraso de 74 anos, que faria se insistisse que ele tinha de migrar dos princípios do século passado para 2022… ? Já para lhe facilitar a vida, e para que seja uma introdução suave ao tema, sugiro-lhe que comece pelo filme que foi feito sobre o Dr. Kinsey e o seu Relatório, em 2004. 

 

Não admira que o humorista refira, nesta difícil jornada dele navegar os complicados meandros da sexualidade humana, o seu “tio Alfredo” como o seu interlocutor,  que deve ter justamente uns 70 anos de idade. Só assim se entende o desfiar de patetices tipo “gajo de Alfama” que para ali vai. Enquanto eu até poderia perdoar o “tio Alfredo” da sua ignorância, ao Ricardo Araújo Pereira já lhe fica um pouco mal. É quase um caso de vida a imitar a arte, Ricardo.

 

De certeza que ele, mesmo não tendo de ser um especialista em sexualidade humana, com uma boa pesquisa na Wikipedia, já poderia ter evitado aquela nódoa de crónica. Ou poderia até ter falado com o mesmo pessoal da ILGA que lhe deu um prémio arco-íris em 2009. De certeza que teriam todo o gosto em explicar-lhe o que ele, pelos vistos, não entende. É que, Ricardo, o prémio foi por serviços prestados à comunidade à altura. Não é uma carte blanche para tu dizeres tudo o que te vem à cabeça sobre a natureza dos outros, por inspiração divina. Se calhar, precipitamos-nos em ter-te dado o título de Português mais empático, já este ano

 

Mas eu compreendo a pressão de alguém que tem uma crónica para escrever regularmente - ao contrário de mim, que escrevo quando me dá na telha. Mas, se não tens nada para escrever, não forces e não uses a comunidade LGBTQIA+ como tema de recurso, quando faltam ideias. Especialmente quando, aparentemente, não fizeste um mínimo de pesquisa. Já dizia o adágio: “a palavra é de prata e o silêncio é de ouro”. 

 

Compreende, Ricardo, que quando alguém é denominado como homossexual ou bissexual, não é por a parte “sexual” lá estar escrita - porque alguém assim o decidiu categorizar - que a sua experiência se reduz ao tipo de pessoas por quem se sente sexualmente atraído e com quem faz sexo.

 

A sexualidade inclui também aqueles por quem sentimos uma atracção afectiva para uma parceria: alguém com quem ter uma vida partilhada, alguém com quem construir uma família e por aí fora. E se a sexualidade já inclui isso, muito mais a vida real e específica das pessoas que são designadas por esses termos.

 

Eu sei que há 74 anos isso era impensável e que as pessoas LGBTQIA+ mal podiam se encontrar para fazer sexo - que diabo, sequer, para beber um copo - quanto mais viver juntas ou estabelecer um lar… mas estamos em 2022, Ricardo. Diz lá isso ao teu tio, se fazes favor - mesmo que ele tenha, aparentemente, problemas com o sexo que os outros fazem.

 

Deixa-me explicar-te, Ricardo: essas pessoas são designadas por esses termos, porque alguém escolheu fazê-lo. Já na Bíblia Deus dá a Adão o poder de nomear as coisas. Isso não altera em nada a natureza delas. É só o nome por que Adão passa a conhecê-las e a designá-las. E o termo aparece em 1868 pela mão de Karl-Maria Kertbeny, Ricardo… uma época em que nem sequer a sexualidade heterossexual era compreendida como incluindo a componente afectiva (ver a parte sobre Freud e Kinsey acima). Era até vista como meramente reprodutiva ou não-reprodutiva. Se calhar, era normal que, numa época tão puritana, o que chamasse mais à atenção fosse o sexo que essas pessoas praticavam. Até o sexo que tu praticarias na época chamaria, Ricardo. Confia em mim.

 

Antes disso, caro sexólogo de improviso, Karl Heinrich Ulrichs , o primeiro activista moderno dos direitos LGBTQIA+ (também conhecido como Numa Numantious, já agora, para tua cultura geral), designava o comportamento do sexo entre homens como “uranismo”; as lésbicas, eram chamadas de “tríbades”. Em nada isso alterava o que essas pessoas eram. Entendes? Ou tenho de ir buscar o diagrama do genderbread man para te explicar? O teu ultraje faz tanto sentido como se alguém, à época de Ulrichs, ficasse incomodado por a definição de "uranismo" definir práticas que não incluíam o próprio Úrano.

 

Será, Ricardo - isto é só uma ideia peregrina minha, mas escuta só… pode até ser que faça sentido até para ti… será que o teu problema é a forma como as pessoas dessas tribos da comunidade LGBTQIA+ vêem a sua natureza e se deixam definir ou será que o teu problema é o facto de estarmos a usar palavras desactualizadas, que não acompanharam o conhecimento que fomos tendo da experiência humana, palavras limitadas que se focavam em apenas um ângulo da questão?

 

Eu sei, ideia maluca… mas já por isso é que deixamos de dizer “transexual”, para dizer “transgénero”. Já por isso é que deixamos de dizer “hermafrodita” para dizer “intersexo”. Porque essas palavras já não nos serviam (apesar de haver gente que, desactualizada, ainda as use). Já por isso é que a sigla expandiu para incluir mais letras: para incluir, por exemplo, outras identidades de género, o que nada tem a ver com quem as pessoas fazem sexo. Até inclui a sexualidade de pessoas que não fazem sexo com ninguém, vê lá tu, os moderninhos.

 

Mas o conhecimento evolui. E muitas vezes, o dicionário falado não acompanha a evolução dos conceitos. Destas questões da linguística, tu e eu até temos alguma consciência, já que nos recusamos ambos a usar o Acordo Ortográfico. Mas já por isso é agora entendemos a sexualidade com um espectro (agradece ao Dr. Kinsey, mais uma vez) apesar das palavras que usamos ainda serem do século XIX. De lá para cá, desde que algumas pessoas corajosas rasgaram o véu do puritanismo Vitoriano e começaram a falar de sexualidade, a nossa percepção das coisas mudou. Incluindo o facto de percebermos que, se calhar, a experiência das pessoas LGBTQIA+ e cishétero tem a ver com muito mais do que simplesmente… com quem vão para a cama. Daí, se calhar, o foco no sexo, em si, ser menos importante como forma de definir as pessoas. Não sei… pensa nisso. 

 

Agora, decidas ou não fazê-lo, vou deixar-te um último conselho que até o teu «tio Alfredo» conseguirá entender: mais vale cair em graça do que ser engraçado.


João Barbosa 

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