Marcos, inovações normativas e lacunas das leis 10/2022, "Solo Sí Es Sí", e 4/2023, "Lei Trans" em Espanha
As leis n.º 10/2022, de 6 de Setembro, para a garantia integral da liberdade sexual; e n.º 4/2023, de 28 de Fevereiro, para a igualdade real e efectiva das pessoas trans e para a garantia dos direitos das pessoas LGTBI foram dois dos projectos legislativos que mais debate público geraram (e continuam a gerar) em Espanha. Talvez isso se deva à grande relevância social dos temas abordados por estas leis (liberdade sexual e protecção dos direitos das pessoas LGTBI, em especial das pessoas trans), o que é revelador da importância de se dispor de legislação a este respeito. No entanto, é de salientar que ambas as leis têm sido objecto de múltiplas vozes críticas. Neste artigo, analisaremos brevemente as luzes e as sombras de ambos os actos legislativos.
A Lei 10/2022, conhecida como a lei "Solo Sí es Sí" ou "Só o sim é sim", faz eco das regulamentações internacionais e nacionais (nomeadamente a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; a Convenção de Istambul; a Convenção de Varsóvia; a Convenção de Lanzarote; a Lei 1/2004, sobre Medidas de Protecção Integral contra a Violência de Género, etc.) para propor uma reforma do direito penal no domínio da violência contra as mulheres) propor uma reforma penal nos casos de atentados à liberdade sexual que coloque no centro da análise a questão de saber se houve ou não consentimento livre para determinar a existência de uma agressão sexual. A lei elimina a tradicional distinção entre abuso sexual e agressão sexual, que enfatiza a importância do consentimento, mas também elimina elementos para julgar os crimes proporcionalmente, estabelecendo apenas a agravante de "extrema gravidade", que depende da avaliação (sujeita à subjectividade) do juiz em questão (Agustina, 2023).
A meu ver, esta maior dependência da apreciação judicial é a maior lacuna da lei, devido ao contexto de forte polarização política em que o país está mergulhado. Por exemplo, alguns juízes com interesses políticos contrários ao governo que promulga a lei podem abusar do espírito não punitivo da lei (de acordo com os princípios do Estado de Direito e da democracia) para reduzir penas, gerando impacto mediático, críticas à lei (e aos seus promotores) e, em grande medida, uma interpretação errada da lei e do problema em geral. De facto, a Lei 4/2023, de 27 de Abril, que reformou a lei "Só sim é sim", também pode ser entendida como um exemplo de má interpretação, pois passou a considerar agressão sexual apenas aquelas em que há intimidação ou violência (Iberley, 2023), reduzindo a relevância jurídica do consentimento livre. Apesar disso, esta lei é um marco para o movimento feminista, do ponto de vista conceptual, por definir crimes como a mutilação genital feminina, o assédio de rua e os casamentos forçados como manifestações de violência sexual (Pérez, 2022), bem como por adoptar uma perspectiva "vitimocêntrica" em termos de protecção, ajuda e cuidados às vítimas (Pérez Machío, 2023).
Algo semelhante está a acontecer com a Lei 4/2023 de 28 de Fevereiro, conhecida como a "Lei Trans". Esta lei permite às pessoas autodeterminarem livremente o seu género sem necessidade de um procedimento médico, psicológico ou psiquiátrico prévio que avalize o processo de transição sexual ou de género da pessoa (Salazar Benítez, 2021).
A lei estabelece ainda um quadro específico de protecção contra os crimes de ódio cometidos contra a comunidade LGTBI. Mais uma vez, as críticas parecem vir de uma motivação ideológica e não legislativa, aludindo a possíveis fraudes em casos de transição (algo que não tem evidência empírica) ou "privilégios" para a comunidade LGTBI.
Em ambas as leis, há uma má interpretação não só dos projectos legislativos em si, mas também dos problemas sociais a que aludem; uma má interpretação que decorre da falta de educação e sensibilização para a violência específica sofrida pelas mulheres e pela comunidade LGTBI. Por conseguinte, ambos os projectos carecem de um apoio multidisciplinar, que deve ter lugar em todas as esferas sociais: educação, ambiente de trabalho, vida pública, meios de comunicação social, actividade cultural, etc. Temos de ter uma cultura popular em que o conceito de "tolerância zero à violência" seja devidamente alargado para que leis ambiciosas e necessárias como a lei "Só Sim é Sim" ou a "Lei Trans" possam ser efectivamente implementadas.
Mafalda Carvalho Cardoso
Aluna da Faculdade de Direito da Universidade do País Vasco (UPV/EHU), Licenciada em Ciência Política (Universidade de Lisboa) e doutoranda em Filosofia (Universidade do Porto).