Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Dezanove
A Saber

Em Portugal e no Mundo

A Fazer

Boas ideias para dentro e fora de casa

A Cuidar

As melhores dicas para uma vida ‘cool’ e saudável

A Ver

As imagens e os vídeos do momento

Praia 19

Nem na mata se encontram histórias assim

Marcos, inovações normativas e lacunas das leis 10/2022, "Solo Sí Es Sí",  e 4/2023, "Lei Trans" em Espanha

banner opiniao_mcc (1).png

As leis n.º 10/2022, de 6 de Setembro, para a garantia integral da liberdade sexual; e n.º  4/2023, de 28 de Fevereiro, para a igualdade real e efectiva das pessoas trans e para a  garantia dos direitos das pessoas LGTBI foram dois dos projectos legislativos que mais  debate público geraram (e continuam a gerar) em Espanha. Talvez isso se deva à grande relevância  social dos temas abordados por estas leis (liberdade sexual e protecção dos direitos das  pessoas LGTBI, em especial das pessoas trans), o que é revelador da importância de se dispor de legislação a este respeito. No entanto, é de salientar que ambas as leis têm sido objecto de múltiplas vozes críticas. Neste artigo, analisaremos brevemente as luzes  e as sombras de ambos os actos legislativos.  

 

A Lei 10/2022, conhecida como a lei "Solo Sí es Sí" ou "Só o sim é sim", faz eco das  regulamentações internacionais e nacionais (nomeadamente a Convenção das Nações  Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; a  Convenção de Istambul; a Convenção de Varsóvia; a Convenção de Lanzarote; a Lei  1/2004, sobre Medidas de Protecção Integral contra a Violência de Género, etc.) para  propor uma reforma do direito penal no domínio da violência contra as mulheres)  propor uma reforma penal nos casos de atentados à liberdade sexual que coloque no  centro da análise a questão de saber se houve ou não consentimento livre para  determinar a existência de uma agressão sexual. A lei elimina a tradicional distinção  entre abuso sexual e agressão sexual, que enfatiza a importância do consentimento,  mas também elimina elementos para julgar os crimes proporcionalmente,  estabelecendo apenas a agravante de "extrema gravidade", que depende da avaliação  (sujeita à subjectividade) do juiz em questão (Agustina, 2023).  

A meu ver, esta maior dependência da apreciação judicial é a maior lacuna da lei, devido  ao contexto de forte polarização política em que o país está mergulhado. Por exemplo,  alguns juízes com interesses políticos contrários ao governo que promulga a lei podem abusar do espírito não punitivo da lei (de acordo com os princípios do Estado de  Direito e da democracia) para reduzir penas, gerando impacto mediático, críticas à lei (e  aos seus promotores) e, em grande medida, uma interpretação errada da lei e do problema em geral. De facto, a Lei 4/2023, de 27 de Abril, que reformou a lei "Só sim é  sim", também pode ser entendida como um exemplo de má interpretação, pois passou  a considerar agressão sexual apenas aquelas em que há intimidação ou violência  (Iberley, 2023), reduzindo a relevância jurídica do consentimento livre. Apesar disso,  esta lei é um marco para o movimento feminista, do ponto de vista conceptual, por definir  crimes como a mutilação genital feminina, o assédio de rua e os casamentos forçados  como manifestações de violência sexual (Pérez, 2022), bem como por adoptar uma perspectiva "vitimocêntrica" em termos de protecção, ajuda e cuidados às vítimas (Pérez  Machío, 2023). 

Algo semelhante está a acontecer com a Lei 4/2023 de 28 de Fevereiro, conhecida como  a "Lei Trans". Esta lei permite às pessoas autodeterminarem livremente o seu género  sem necessidade de um procedimento médico, psicológico ou psiquiátrico prévio que avalize o processo de transição sexual ou de género da pessoa (Salazar Benítez, 2021). 

A lei estabelece ainda um quadro específico de protecção contra os crimes de ódio cometidos contra a comunidade LGTBI. Mais uma vez, as críticas parecem vir de uma  motivação ideológica e não legislativa, aludindo a possíveis fraudes em casos de transição (algo que não tem evidência empírica) ou "privilégios" para a comunidade LGTBI.  

Em ambas as leis, há uma má interpretação não só dos projectos legislativos em si, mas também dos problemas sociais a que aludem; uma má interpretação que decorre da  falta de educação e sensibilização para a violência específica sofrida pelas mulheres e  pela comunidade LGTBI. Por conseguinte, ambos os projectos carecem de um apoio multidisciplinar, que deve ter lugar em todas as esferas sociais: educação, ambiente de  trabalho, vida pública, meios de comunicação social, actividade cultural, etc. Temos de  ter uma cultura popular em que o conceito de "tolerância zero à violência" seja  devidamente alargado para que leis ambiciosas e necessárias como a lei "Só Sim é Sim"  ou a "Lei Trans" possam ser efectivamente implementadas. 

 

Mafalda Carvalho Cardoso

Aluna da Faculdade de Direito da Universidade do País Vasco (UPV/EHU),  Licenciada em Ciência Política (Universidade de Lisboa) e doutoranda em Filosofia  (Universidade do Porto).